terça-feira, 1 de setembro de 2015

Olhá coltura


António Pinto Ribeiro escreve hoje, no Público, um bom artigo sobre os programas para a cultura dos principais partidos. Nem sempre foge ao esquematismo do costume  - a direita valoriza o património, a esquerda a criação -, um esquematismo que tem muito que se lhe diga depois do caso Crivelli, mas vale a pena ler. Algumas das críticas são muito certeiras, por exemplo aquela em que pergunta o que é o "povo" das políticas culturais do PCP. Mas interessam-me mais as que arremessa à coligação PSD-CDS porque é a minha área partidária. Duas, em concreto.
Diz ele que os partidos de direita, "em relação à a arte contemporânea, privilegiam o decorativo, rondando muitas vezes o kitsch". Está a pensar, obviamente, na comparência majestática de várias figuras institucionais (Maria Cavaco Silva, o próprio Primeiro-Ministro, o Secretário de Estado da Cultura) na exposição de Joana Vasconcelos na Ajuda, um dos mais fulgurantes exemplos de parolismo de Estado dos últimos anos. A direita tem uma relação complexada com a arte contemporânea, é certo. Olha para aquilo, não compreende, e não compreende que a arte contemporânea não quer muitas vezes ser compreendida, e vai atrás do que é popular. Joana Vasconcelos é popular, o que lhe valeu a exposição na Ajuda e a representação de Portugal na Bienal de Veneza. Mas pergunto-me, o que Pinto Ribeiro não faz, se não é a própria arte contemporânea a coroar o kitsch de Duchamp a Damien Hirst. Se a questão é de apoios, subsídios, reconhecimento público, como distinguir o que tem qualidade do que não tem? O meu conservadorismo tem um critério imperfeito, mas útil: o tempo fará a triagem. Só que invocar este critério é logo cair no esquematismo citado (a direita valoriza o património, e tal). Somos presos por ter cão e presos por não ter, se me permitem o plebeísmo - e permitem, porque somos bué democráticos e há muito que derrubámos os muros entre alta e baixa cultura.
A outra crítica fia mais fino. Diz Pinto Ribeiro que não vê na coligação "protagonistas preparados para tais funções". Tem alguma razão. Descontando o preconceito, olhamos para a direita e não parece haver candidatos naturais a governar um Ministério, uma SEC ou as respectivas adjacências (direcções-gerais, assessorias, etc.). O que implica não apenas competência política, mas também sensibilidade cultural e capacidade de dialogar com o sector. Há nomes que me vêm logo à cabeça, mas têm sempre um handicap qualquer: Adolfo Mesquita Nunes (não será deputado), Rui Ramos (gera anticorpos na opinião publicada), Pedro Mexia (é demasiado simpático para a esquerda)... Tudo somado, porém, talvez isto seja uma vantagem. A direita moderna prefere deixar que a cultura se governe a si própria. E em Portugal, então, com tão pouco dinheiro para tantas capelinhas, a tarefa exige um diplomata de pele dura e talentos de mercearia. Há poucos, já se sabe. E geralmente acabam mal. Se querem um Malraux, têm que gramar um De Gaulle. Mas não corremos esse risco. Ganhando o PAF, veremos o que se arranja. A cultura não merece menos.

7 comentários:

  1. João, obrigado pelo teu gentil comentário que me permite acentuar alguns pontos que me parece não foram bem entendidos. Sobre a oposição entre a política cultural da esquerda e da direita ( com mais espaço teria acentuado as diferenças que existem entre as direitas e as esquerdas) copio: Durante anos a oposição fazia-se entre as políticas de direita, que sobrevalorizavam o património contra a arte contemporânea que, por sua vez, era prioritária nas políticas de esquerda. Esta oposição, aparentemente muito simplificada, sempre existiu e embora hoje pareça diluir-se, ainda subsiste no modo de uso. Os partidos de direita dão ao património rentabilização e valor comercial e motivo de propaganda nacionalista – e em relação à arte contemporânea, privilegiam o decorativo, rondando muitas vezes o kitsch -, a esquerda, como podemos ver na generalidade dos partidos portugueses, tem uma visão do património como uma herança contraditória e encara a arte contemporânea como um modo de conhecimento crítico. Também é um facto que dentro desta divisão há por vezes comportamentos inesperados. No entanto a nítida divisão entre a esquerda e a direita pode ser confirmada pela prática dos governos de direita. A forma como pretendem alienar a gestão pública de instrumentos da cultura, atirando-a para a responsabilidade do mecenato ou como ‘terceirizam’ a gestão de palácios e outros monumentos rentáveis são exemplos. Subjacente a esta decisão está uma visão da actividade cultural como maioritariamente de entretenimento e de lucro.

    Oposta a esta visão a esquerda considera fundamental a dimensão pública das actividades culturais e artísticas associadas ao desenvolvimento de mecanismos de literacias várias.

    Quando te referes è dificíl relação das pessoas com a arte contemporânea excepto no caso de uma pintora que referes é importante considerar que toda a arte necessita de "chaves" de entrada e que a aquisição das mesmas é morosa, pouco acessível, ostracizada (muitas vezes com a responsabilidade dos artistas) e é por isso que também as edições de poesia são de 300 a 500 exemplares e o cinema de autor é excluído das 'soirées' de fim de semana. Imaginas que a iconografia cristã era entendida pelo povo na sua sofisticação? ou desta apenas retinha as imagens do medo do inferno ou a mortificação de Cristo ou a glória da aecensão ao céu?...
    um abraço apr

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. "João"? Presumo que quis escrever "Pedro" por isso aprovei o comentário, o Pedro depois responde.

      Eliminar
    2. Muito interessante ponto, este último. Sem aprofundar muito, diria que a iconografia cristã tinha (e tem) uma multiplicidade de leituras que permitem uma compreensão do seu sentido tanto ao "povo" como aos "intelectuais". É um dos segredos da sua perenidade. Mas, por trás disto, há sobretudo uma vontade de comunicar a verdade sob a forma de imagens (o livro da Criação de que falam os autores medievais) que falta a muita da arte contemporânea. O Cristianismo, esquecemo-nos muitas vezes, recorreu sempre à melhor arte popular para difundir a sua mensagem. A complexidade de Miguel Ângelo ou Bach era entendida de formas diferentes por todos, mas era entendida e fazia-se entender. é essa a grande diferença em relação a muita da arte contemporânea, que opta deliberadamente pela incomunicabilidade ou porque não tem nada a dizer ou porque não acredita que valha a pena dizer o que quer que seja. A não ser, claro, a originalidade e a expressão própria da individualidade do artista, o que é pouco, muito pouco, porque a arte, por definição, é comunicação com um público. Negar essa possibilidade (sublinho possibilidade) de comunicação é também uma forma de kitsch.
      O sucesso de Joana Vasconcelos vem, quanto a mim, da conjugação de dois factores. Por uma lado, tem uma leitura mais fácil do que a maioria dos artistas contemporâneos. As "chaves de entrada" da sua obra são acessíveis a um público médio, urbano, minimamente culto, tanto mais que joga também com símbolos identificáveis (por exemplo, o coração de Viana). Por outro lado, a invulgaridade da escala e de alguns dos materiais usados (os famosos tampões) contém aquele toque transgressor que esse mesmo público associa à arte contemporânea. Daí o seu sucesso entre o público e o poder político, sempre vassalático da "cultura". É o melhor dos dois mundos. A direita pode estar, assim, com o povo e com a criação, com as massas e com as elites. E sem riscos políticos porque nada há ali de subversivo. É uma arte aparentemente rebelde, como se espera da criação contemporânea, mas domesticada para consumo popular.

      Eliminar
  2. a arte ou vive por si própria
    ou à custa dos contribuintes
    num regime socialista onde tudo é 'tendencialmente gratuito'

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Está a simplificar: há outras opções. A arte não deve ser tendencialmente gratuita, mas o seu custo não pode ser tão elevado que se torne um privilégio dos mais ricos.

      Eliminar
  3. Judiciosas considerações. Podemos prescindir de sucedâneos de Malraux e Jack Lang kitsch... não dos que colocam a mão no teto da caverna e sopram a argila.

    XisPto

    ResponderEliminar