quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Crónicas do Planeta Oval: Começou o Quatro Nações

É uma das últimas oportunidades para vermos os big boys do hemisfério sul em acção, antes do Mundial de 2015 em Inglaterra. O Rugby Championship, torneio anual entre a Nova Zelândia, a Austrália, a África do Sul e a Argentina, começou no sábado. Embora seja uma cópia receente do tradicional Seis Nações europeu, chama-se Rugby Championship porque a malta do Novo Mundo acha que o rugby a sério só se joga abaixo do equador - o resto é um sucedâneo.  Têm alguma razão. À excepção de 2003, ganho pelos bifes, todos os Mundiais foram ganhos por All Blacks, Wallabies e Springboks. Compreende-se, portanto, que o mundo da oval tenha os olhos postos down under. E já houve uma surpresa: a Austrália impôs um empate à Nova Zelândia em Sidney, interrompendo a série de dezassete vitórias consecutivas dos visitantes.
Ainda é cedo para tirar grandes conclusões, mas mais surpreendente que o empate a 12 pontos é que os All Blacks só tenham conseguido marcar pela bota de Aaron Cruden (quatro penalidades convertidas, tal como o seu adversário directo Kurtley Beale). A chuva diluviana que se abateu sobre os antípodas pode explicar o magro resultado e a dificuldade em jogar à mão, curiosamente a exemplo do que aconteceu também em Pretória, onde a África do Sul venceu a Argentina graças a muito trabalhinho dos avançados e a um belo ensaio de Pienaar, o médio de formação do Ulster, logo no primeiro minuto.
Pode explicar, sim. Mas talvez seja mais do que isso: talvez seja o ocaso da geração dourada que ergueu a Taça William Webb Ellis em 2011. McCaw e Kaino já viram melhores dias e Kieran Read não pode fazer tudo sozinho. É nos três-quartos, porém, que surgem as maiores dúvidas. Se olharmos para a Nova Zelândia dos últimos anos, há quatro titulares indiscutíveis atrás da mêlée: Dan Carter a 10, Ma´a Nonu a 12, Conrad Smith a 13 e Israel Dagg a 15. É esta a coluna vertebral das linhas atrasadas. Embora Aaron Smith pareça ser agora o dono da camisola 9, o médio de formação tem mudado sem efeitos visíveis. O mesmo se pode dizer dos pontas, apesar da notória preferência do mister Steve Hansen por Cory Jane e Julian Savea. Mas o fio de Ariadne que vai do médio de abertura ao arrière, passando pelos dois centros, é mais frágil. Ora, no sábado passado, dos quatro magníficos só Ma´a Nonu estava em campo, e numa posição diferente da habitual.
A importância de Carter salta à vista. É o melhor abertura da actualidade, para não dizer de sempre. Tão simples quanto isto. Mas está lesionado, uma constante nos últimos tempos, e a idade torna cada vez mais duvidoso que chegue inteiro a 2015. Infelizmente (sobretudo para quatro milhões de neozelandeseses), não há suplente à altura. Daí que Hansen tenha optado por iniciar o último jogo com Aaron Cruden, o suspeito do costume e senhor de um muito fiável jogo ao pé, substituindo-o na segunda parte pelo mais dinâmico e menos rodado Beauden Barret. Solução dois-em-um, mas longe de ideal. Quer-me parecer que a equipa começa a ressentir-se do tremelique.
Tanto mais que também há problemas no meio-campo. Se Carter é o melhor abertura da actualidade, Ma`a Nonu e Conrad Smith são o melhor par de centros da actualidade. Não apenas pelo valor de cada um, mas porque se completam às mil maravilhas. Ao contrário de O`Driscoll e Fofana, claramente acima de quem têm ao lado, a dupla kiwi potencia-se em conjunto. Ma´a Nonu abre espaços, Conrad Smith aproveita-os. O 12 é o músculo, o 13 é o cérebro. A ameça de Nonu obriga os três-quartos do outro lado a jogar mais perto e a desproteger terrenos que Smith explora com inteligência, surgindo onde ninguém o espera para maracar ensaio ou manter a bola viva. É um segundo-centro que não brilha pela velocidade ou pelo poder físico, mas por estar sempre no sítio certo. Sem ele, a notável capacidade de perfuração do primeiro-centro deixa de ser tão notável. Foi o que sucedeu no sábado. Por outras palavras, o discreto Conrad Smith tornou-se quase tão importante para os campeões do mundo como o estelar Dan Carter. Felizmente (sobretudo para quatro milhões de neozelandeses), está de boa saúde. A razão pela qual não jogou contra a Austrália foi o nascimento do primeiro filho. Um gajo que troca a glória dos All Blacks pela sala de espera de uma maternidade bem merece uma estátua, mas, se houvesse justiça no mundo (o que inclui Sidney, I presume), os cangurus podiam levantar outra à criança...
Já a falta de Israel Dagg, no banco pela primeira vez em três anos, foi menos sentida porque a alternativa é excelente: Ben Smith. Com 15 ensaios em 31 internacionalizações, e podendo fazer todos os lugares entre o 11 e o 15, tarda, porém, a fixar-se na equipa. O seu estilo elegante assemelha-se ao do homónimo Conrad, de quem será, quanto a mim, um herdeiro natural. No sábado, Hansen deu-lhe a camisola 15, ou por achar que ele prefere jogar lá trás (verdadeiro), ou por achar que é mais fácil substituir Conrad Smith do que Israel Dagg (falso). Sem nenhuma vantagem, como se viu.
Mas tenhamos calma. Pode ter sido um dia mau. Afinal, antes da última derrota - com a Inglaterra, em Dezembro de 2012 -, os  kiwis vinham de outro ciclo de vinte vitórias. Perderam e depois voltaram a ganhar dezassete jogos seguidos. Talvez McCaw volte a ser McCaw. Talvez Carter recupere a tempo. Talvez Conrad Smith não troque tão cedo os campos de rugby pelas salas de espera.  
Talvez.

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