terça-feira, 22 de julho de 2014

Eutanásia, bispas e chá das cinco


Enquanto a Inglaterra discute a legalização da eutanásia, a Igreja anglicana aprova a ordenação episcopal de mulheres. Não será mera coincidência. A sociedade inglesa é hoje uma das mais secularizadas da Europa, como apontam todos os dados sobre a prática religiosa, e o anglicanismo é uma das confissões cristãs mais sujeitas aos ventos do século. Nada de novo. Desde a sua origem que a Church of England é mais England do que Church.
Católico e admirador da cultura britânica (não é um paradoxo), isto preocupa-me. A secularizarização progressiva não arrastará, mais tarde ou mais cedo, a sobrevivência da própria Igreja anglicana? Quando os crentes pensam como os não crentes, qual é a diferença? E a Inglaterra histórica que conhecemos, a terra da da liberdade e da rule of law,  resistirá a esta erosão religiosa? Se Tocqueville estava certo ao sublinhar o nexo entre instituições democráticas e religião cristã, o declínio do Cristianismo não tocará a qualidade da democracia? E, sem a velha Igreja nacional, de que modo a presença crescente do Islão afectará o espaço público?
Talvez saibamos a resposta em breve. Entretanto, inquieta-me que a Inglaterra seja, cada vez mais, uma espécie de França com chá das cinco. (Que me desculpem os franceses, mas tenho pouca fé na ética republicana.)

5 comentários:

  1. Isto leva-nos à curiosa conclusão de que a liberdade e a rule of law estão em decadência na Inglaterra desde o Henrique VIII. Mais ainda, que nos países nórdicos é a barbárie completa.
    Não é de hoje que as sociedades do norte da Europa, Inglaterra incluída, são as mais secularizadas da Europa e nem por isso são menos civilizados do que os do sul, julgo eu. O chá das cinco na França é que é tradicionalmente acompanhada de missa, por vezes daquelas pré-conciliares, à séria.

    caramelo

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  2. Não, não leva a essa conclusão. Leva à conclusão, de resto não original, que a religião é um factor importante da coesão social, e que nas sociedades anglo-saxónicas, por motivos que Monsieur de Tocqueville se deu ao trabalho de explicar, isso se manifestou no respeito pelo bem comum indispensável à democracia. O Orwell diz mais ou menos o mesmo em "O leão e o unicórnio". O caso dos países nórdicos será diferente, e nenhum deles se deu ao trabalho de explicar nada, mas o protestantismo das pequenas comunidades escandinavas não anda assim tão longe da América jeffersoniana ou da Inglaterra parlamentar. De qualquer modo, eu seria um pouco menos idealista em relação à civilização dos nórdicos. Assim de repente, ocorrem-me as leis eugenistas dos anos 30, as votações confortáveis dos partidos anti-imigração ou aquela mania de não deixar um tipo verter águas depois das 10 da noite. Cada um tem a barbárie que merece.

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  3. Não sei que outra conclusão se pode tirar. É o Pedro que diz que teme uma coisa que começou há cinco ou seis séculos e que se tem vindo a agravar. Se diz que a religião tem sido na Inglaterra um factor de coesão social e liberdade e rule of law, pergunto-me qual religião, afinal. Religião, parece-me, tinham os papistas, que ali se resumiam a alguma (alta) aristocracia e aos irlandeses. Church of England é outra coisa, como reconhece e toda a gente sabe.
    Eu não idealizo país nenhum, mas é melhor não falarmos das eugenics, nem do fundador e teóricos e apoiantes das eugenics, nem do país, essa jóia da coroa do império britânico, que primeiro implementou as eugenics.

    caramelo

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  4. Em primeiro lugar, o anglicanismo não esgota o espectro religioso inglês. Está a esquecer-se das confissões anticonformitas, que produziram os quakers, Locke, grande parte da colnização da América, a campanha pela abolição da escravatura, etc. Em segundo lugar, o anglicanismo nunca foi apenas isso que diz (e que eu também digo, de modo algo caricatural). Convém não esquecer que a fé anglicana foi uma das causas a Gloriosa Revolução e, portanto, do reforço do parlamentarismo que se seguiu. Mas a novidade, hoje, é que essa fé, por muito social e espadiana que sempre tenha sido, se socializou de vez. Por outras palavras, securalizou-se de uma forma nunca antes vista porque a própria sociedade inglesa está cada vez mais secularizada. Isto, na escala que hoje vemos, é novo e terá certamente consequências. Quais, ainda não vemos. Mas a avaliar pela França, que fez o mesmo percurso de secularização mais cedo e hoje é governada por uma casta de super-homens nitzcheanos, amorais, corruptos e violadores de criadas em quartos de hotel, quando não pela Frente Nacional, o resultado não será bonito. O post só quer dizer isso, não é uma jeremíada pelo declínio e queda do chá das cinco.

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  5. Já agora, lembro que os grupos e pessoas que mais se opuseram ao eugenismo em Inglaterra nas primeiras décadas do século XX são precisamente os adversários da secularização: católicos e a "ala conservadora" anglicana (basta pensar no exemplo de Chesterton). Tal como hoje são os que se opõem à eutanásia, ao casamento gay, à ordenação de mulheres, etc., com os "progressistas" do outro lado. Dá que pensar.

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