sexta-feira, 15 de maio de 2015

Cesse tudo o que a musa antiga canta

Talvez seja da comunhão de destinos com o animal feroz, mas parece haver uma inexorável lei comum aos mais ardentes defensores de Sócrates: tarde ou cedo, recorrem gloriosamente ao vernáculo para dizer de sua justiça.
Primeiro foi o Dr. Soares, pai da pátria e mestre da língua. Perante o desaforo cósmico de ver um ex-PM socialista atrás das grades (o que já não se via desde o amigo Craxi), acusou sem temor nem rebuço "a malandragem" responsável por tal infâmia. A malandragem, supõe-se, inclui o juiz Carlos Alexandre ("ele que se cuide"), o Ministério Público cúmplice, o Presidente da República demissionário, o maquiavélico Governo, o Cardeal-Patriarca e todos os portugueses não inteiramente convencidos da santidade de Sócrates. E os que ainda não foram a Évora, claro. Malandros.
Depois foi o Dr. João Araújo, brilhante causídico que também fala muito. Entre dois pedidos de habeas corpus, incomodado com a presença de jornalistas na via pública, saiu-lhe um genuíno desabafo contra "esta gajada" das notícias. Não sem antes ter dedicado a Tânia Laranjo, do Correio da Manhã, a memorável e churcilliana réplica "A senhora cheira mal, vá tomar banho!" Um clássico instantâneo da legítima indignação, ao pé do qual os sms de António Costa à restante gajada não passam de redacções infantis sobre a Primavera.
Mas a portentosa aparição de Sofia Fava, ex-mulher de Sócrates - ou, como ela diria, mãe dos seus filhos -, alcandorou a retórica pró-socrática a épicos patamares. Acometida de justissíma fúria contra a Procuradora-Geral da República por aquilo nós sabemos, descreveu-a como "esta pega, feia, gorda, invejosa, nojenta, salazarenta, cretina e complexada". Hesito, confesso-vos, sobre o que será mais admirável: se a criatividade dos apodos, se a cadência demolidora da enumeração, se o genial uso do eufemismo "pega", se aquela vírgula entre o substantivo e o adjectivo, se a delicada rima interna em "enta", se a vigorosa aliteração final do "cre" e do "com", se a subtil sugestão de que ela, ah!, ela, mãe dos filhos de Sócrates e mensageira do seu ânimo filosófico, sabe dos demónios interiores da perversa magistrada aquilo que nós nem sonhamos.
É, pois, oficial. A menos que José Lello mande o director da cadeia de Évora levar no pacote, ou que Isabel Moreira clame contra a evidente inconstitucionalidade de Sócrates estar preso apenas porque "é sexy, porra!", ou que os Abrantes revelem por fim ter Passos Coelho nascido de um blind date entre a Merkel e o Bin Laden no Congresso da Figueira da Foz, julgo impossível superar as alturas a que Sofia Fava elevou a apologia de Sócrates. "Cesse tudo o que a musa antiga canta/ que outro valor mais alto se alevanta". Se me permitem a banalidade.

19 comentários:

  1. E sobre a conversa de escárnio e "não me ponham uma pistola nas mãos que eu mato-os todos" de alguns juízes nas redes sociais tem algo a dizer?

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    1. Tenho a dizer que, infelizmente, tal frase não se aproxima nem de perto nem de longe do estratosférico nível literário em que Sofia Fava colocou a dialéctica em torno do recluso 44. A nossa magistratura tem muito a aprender com os amigos e as amigas de Sócrates.

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    2. Fico esclarecido quanto ao seu conceito de dignidade das instituições. Agradecido.

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    3. Pedro,
      Não vale a pena, Ainfa acabas a perguntar ao nosso amigo o que ele acha sobre a dignidade institucional de um exPR ameaçar em tom siciliano um juiz.
      Isso é que eles querem, não entremos no ringue.

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    4. Cá está
      http://www.ionline.pt/artigo/392482/glosas-e-comentarios-?seccao=Opiniao_i

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    5. Cá está, cá está. Ainda há decência na praça
      http://www.publico.pt/portugal/noticia/a-rapaziada-do-grupo-magistrados-unidos-vip-1696109

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  2. A Fava empregou da mais fina ironia que seria possível e pensável empregar!! Justa indignação e sem opoente possível! Não confundir com as pantominices mais ou menos estultas de outros!
    E sim, secundando aqui o caro, e precedente, anónimo, às cantigas de escárnio pode o caro Picoito opor lusíadas, se assim lhe aprouve!

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    1. Just: se eu tiver um facebook em que só admito meia dúzia de pessoas, por ex, amigos meus de farra, e nele tecer comentários sobre a sexualidade de Paulo Portas, isso é ou não é equivalente à minha sala de estar com um copo na mão? Que direito tem um vizinho de se pôr a escutar e vir cá para fora dizer que um desse meus amigos, por acaso juiz, disse que gostava "de dar um tiro no bichona do Portas"?

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    2. Não é equivalente e claro que o vizinho não tem direito nem o deve fazer, mas o facebook não é a sala de estar. A única atitude sensata sobre privacidade e segurança na net é que... não existe, isso é cultura geral. Afirmações insultuosas num grupo "privado" na net não podem deixar de ser consideradas na ordem jurídica como insulto público, ou, noutro plano, as redes sociais na net não emulam as relações sociais.

      XisPto

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    3. por essa de ordem de ideias tb não existe segurança em minha casa: se eu for juiz tenho de andar a falar baixinho ou falar em código num jantar num restaurante. Está tudo doido??? Vou recordar um epsiódio...
      atenção a essa sua última frase meu caro...

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    4. Vi o episódio, parece jogar a favor do que eu disse. Uma conversa verbalizada num espaço público, em voz alta, precisamente corresponde a algo escrito num grupo "privado" na net, julgo que é esse o entendimento generalizado, a convenção social. Em sentido contrário funciona o espaço doméstico, privado, individual, que o jurídico há muito acolheu. Fava nunca seria criticada se tivesse feito aquelas afirmações na sua sala, mesmo em voz alta, ou numa conversa telefónica e elas se tornassem públicas contra a sua vontade. Acho um pouco cómico ter apagado o que escreveu. Não se apaga nada na net...

      XisPto

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    5. Em voz alta? O meu amigo dá-se conta do que escreveu? Quem define o voz alta? Porra, se eu estiver à mesa com um amigo tenho de usar um modulador de voz?

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    6. Temo que a resposta seja sim e espero não estar a ter o atrevimento dos ignorantes: o superego não trata disso mesmo para que não nos vergemos à necessidade de juizos morais complexos a propósito de tudo e de nada?

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  3. É uma questão de casta.
    Ele os seus acólitos acham-se uma casta superior.
    http://fateadal.files.wordpress.com/2009/03/castas4.jpg

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  4. Quando me lembro da Sôdôna Rita, no primeiro dia em que foi visitar o pai dos seus filhos a Évora, carregada com um saco de livros, a responder à pergunta de um jornalista sobre que livros eram com um "Não sei... São sobre filosofia..." tão inocente... E afinal estava ali uma intelectual, uma verdadeira artista da sintaxe e da semântica da língua portuguesa, dona de um tão rico e expressivo vocabulário! Ele há coisas...
    Raquel

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    1. Não devemos julgar um livro pela capa. Mesmo um livro de filosofia.

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    2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  5. Sofia, e não Rita (com um pedido de desculpas a eventuais visadas). E já que estamos nisto, Sra. Engenheira (ai o que isto me faz lembrar...) e não Sôdôna, lapso pelo qual me penitencio, citando a visada...

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