Ontem, no Público, João Miguel Tavares afirmou que a repentina conversão de Passos Coelho à social-democracia ("social-democracia sempre") pode abrir espaço a um "verdadeiro partido liberal" entre nós, que ocupe o vazio deixado à direita pelo PSD. Há um ponto em que tem meia razão e outra em que não tem razão de todo.
Tem meia razão quando nota que a mudança, depois de quatro anos de "discurso liberal" (fora os que estão para trás), soa a falso. Chamemos-lhe o momento "piegas" de Passos, que só levará a sério quem leva sempre Passos a sério. Mas é esta falta de seriedade que torna a conversão meramente instrumental, como sucede a todas ideias de Passos. Em breve será revertida, se isso lhe trouxer qualquer vantagem. Nem Passos nem o PSD mudam de um dia para o outro. As notícias do espaço vazio à direita são claramente exageradas.
Mas João Miguel Tavares não tem razão quando imagina que um "verdadeiro partido liberal" seria possível em Portugal. Não é, e por muitas razões Ocorrem-me três de imediato.
Primeiro, por causa dos liberais indígenas, que chamam socialista a qualquer programa político que não subscreva, por junto, a privatização do SNS, da TAP, da Torre de Belém, dos rangers de Lamego e do consulado no Luxemburgo. O problema do "verdadeiro partido liberal" não está no "liberal", mas no "verdadeiro". A exigência de um "verdadeiro" liberalismo, que só um "verdadeiro partido liberal" poderia garantir, aproxima-os paradoxalmente da extrema-esquerda: uns e outros, em campos opostos, preferem a a pureza ideológica da utopia aos incómodos limites da realidade. Com uma diferença: a extrema-esquerda teria sempre mais votos do que um hipotético partido liberal. O programa máximo de Estado mínimo talvez apele ao país da massa, mas não às massas do país. Um "verdadeiro partido liberal" seria um partido de quadros, de estrangeirados, de elites, mas não um partido com eleitorado e, portanto, com vocação de poder. Isto também explica que os nossos autoproclamados liberais, quando vão para a política, façam carreira no PSD ou no CDS, esses vis grémios socialistas, e que alguns acabem até por perder o liberalismo no processo de transferência. Mas quem perde mais é o país: um pouco de liberalismo real (e não apenas "verdadeiro") fazia-nos mesmo muita falta.
Em segundo lugar, a classe média, que na anglosfera é o nervo da sociedade civil, do associativismo e da iniciativa privada, como viu Tocqueville, em Portugal depende do Estado. Mais: a nossa classe média, lembra Vasco Pulido Valente, é uma criação do regime constitucional do século XIX, que com ela encheu o funcionalismo público nascente. Num país em que só havia ricos e pobres, foi assim que se fez o corpo eleitoral do constitucionalismo. Esta burguesia sempre dependeu do Estado para ter um emprego seguro e alguma mobilidade social. Nascida e criada com a monarquia liberal, nunca se mostrou grata nem ao rei nem ao liberalismo. No final do século, tornou-se republicana, sobretudo nas grandes cidades. Antes de o Senhor D. Carlos ser corrido a tiro, já os municípios de Lisboa e Porto estavam nas mãos do PRP, cujo amor à liberdade é conhecido. Claro que as coisas não melhoraram na I República, talvez a época mais iliberal da nossa história, nem na ditadura, onde a mesma classe média que tinha sido furiosamente republicana se tornou calmamente apolítica, pelo menos até à guerra colonial. Veio a democracia, mas o amor da burguesia ao Estado manteve-se, agora sob a forma de subsídios europeus e de "escola pública". A esta burguesia costuma dar-se o nome de centrão e dizem que é aqui que se ganham eleições. Passos sabe isso e Tavares também, mas sonhar não custa. Enquanto o sonho não for privatizado.
Por fim, e esta é talvez a razão mais profunda, o liberalismo lusitano não se desenvolveu gradual e organicamente, graças a séculos de democracia censitária e de comércio com o Império, como em Inglaterra, mas foi imposto de cima para baixo pela guerra civil e pelo fim abrupto do Antigo Regime. Rui Ramos, ecoando Alexandre Herculano, diz que a legislação liberal de Mouzinho da Silveira foi "a maior e mais brusca transformação político-social da história portuguesa", comparável, neste cantinho, às ondas de choque que a Revolução Francesa levou a todo o continente europeu. Por outras palavras, os liberais portugueses, como em França, em Itália, em Espanha, etc., impuseram o liberalismo por decreto e apropriaram-se do Estado em vez de o dispensar. Almeida Garret, nas Viagens na Minha Terra, resume tudo com a frase célebre de que o constitucionalismo tinha trocado o frade pelo barão. Ou seja, substituíra o poder da Igreja e da velha nobreza, despojadas de bens e privilégios em 1834, por uma nova classe de "devoristas", pessoal político dos partidos liberais que comprara os latifúndios das extintas ordens ao desbarato e ocupara o aparelho de Estado em sistema rotativo. O pretexto, como sempre, era modernizar a pátria, mas a modernização devorista teve consequências fatais para o liberalismo: impediu o aparecimento de uma classe de pequenos e médios proprietários, tão necessária ao regime e tão sonhada pelos seus mais lúcidos defensores (Mouzinho e Herculano, por exemplo); perpetuou a miséria do proletariado rural, que daria no século XX a mais firme base de apoio social ao PCP; alimentou o ressentimento da província contra o progresso imposto por Lisboa, que explodiu por vezes em autênticas guerrilhas populares como a Maria da Fonte, no Minho, ou o Remexido, no Algarve. O liberalismo era coisa de Lisboa, como no tempo de Salazar será coisa da "livre Inglaterra". Nunca pegou no país real.
E eis porque nunca haverá um "verdadeiro partido liberal" em Portugal: não há uma sociedade que o sustente. Passos bem pode jurar amor eterno à social-democracia, que a burguesia prefere a segurança à liberdade. Sempre.