Simplificando muito, há duas falsas soluções para a violência policial de que tanto se tem falado nos últimos dias.
Uma é aquela a que poderíamos chamar de direita: os excessos da polícia são condenáveis, mas não demasiado. O uso da força pelos representantes da lei implica sempre o risco de excesso, mas, como resposta ao uso da força à margem da lei, é tolerável e, de algum modo, inevitável. Pior seria a passividade policial, a violência descontrolada, a desordem, etc. Entre dois males, tolera-se, portanto, o abuso da autoridade porque nos defende de males maiores. Esta atitude é muito pouco tranquilizadora porque o abuso de autoridade é, em si próprio, ilegítimo e não é por estar ao serviço do Estado que se torna legítimo. Mais: o poder torna-se ilegítimo na medida em que recorre ao uso desproporcionado ou arbitrário da força, pois perpetua a injustiça que diz combater. A teoria política, da democracia antiga ao constitucionalismo moderno, tem uma velha e execrada palavra para isto: tirania. Um Estado de direito, por definição, é aquele em que todos, incluindo os titulares do poder, se submetem à lei. O abuso de autoridade nunca é um mal menor. Pelo contrário, é muitas vezes a origem dos maiores males. Talvez não seja um preciosismo relembrar que é precisamente a razão invocada pela Gloriosa Revolução inglesa ou pela Declaração de Independência americana para pegar em armas contra a autoridade.
A esquerda oferece uma solução diametralmente oposta. Sempre reactiva ao poder, sobretudo quando o poder não está nas suas mãos, desconfia do uso da força pelo Estado. Desculpa os alvos da repressão policial, tenham ou não culpa, do mesmo modo que a direita desculpa as forças da ordem. Aliás, o conceito de culpa tem, para a esquerda, uma extensão muito mais específica. Está associado à farda, como se a farda já fosse um crime. Por uma razão óbvia: a farda é o braço armado da situação, do poder vigente, do trono e do altar, e sê-lo-á enquanto não fizermos a revolução e instaurarmos a utopia. Talvez seja uma memória geológica do tempo em que a PIDE e a GNR perseguiam o povo ao serviço da ditadura, ou talvez seja a mera desconfiança soixante-huitard da autoridade. No triste episódio de Guimarães, os inquéritos oficiais (três) ainda mal começaram, mas a condenação do agora célebre subcomissário Silva já é unânime. Quanto aos acontecimentos do Marquês, é mais difícil simpatizar com hooligans do que com um pai de família que só levou o filho ao futebol, mesmo se do outro lado está o Corpo de Intervenção. Mas não tardará muito até que alguém venha explicar o sempre revolucionário arremesso de pedras contra os gendarmes (sous le pavé la plage, e tal) com a austeridade, a troika, a coligação, a sociedade repressiva do povo carnavalesco ou outras perversões do capitalismo. Esperem pelo Professor Boaventura.
Ou talvez não seja preciso, porque José Vítor Malheiros, um colunista em geral razoável apesar do viés canhoto, atira hoje no Público a mais sectária acha para a fogueira que tenho lido sobre a matéria. A crónica segue pelo previsível caminho de verberar em bloco a actuação policial (com alguns pormenores demagógicos pelo meio), mas, lá para o fim, desvia a sentença para o Governo, como não podia deixar de ser. É que "convém a certas forças políticas que os portugueses tenham medo de sair à rua, de protestar, de defender os seus direitos, que se habituem a excessos por parte das autoridades, que se habituem a que as autoridades nunca sejam escrutindas e sancionadas. O homem agredido no domingo não é, infelizmente, primo da ministra Anabela Rodrigues. Mas, num país democrático, a polícia não pode estar ao serviço das agendas políticas deste ou daquele grupo ou das preferências de classe dos governantes".
E pronto, está explicado: a culpa da porrada na bola é de Passos e Portas. Mesmo sem ter a coragem de o dizer abertamente, Malheiros insinua que a Polícia malha nos povo porque o Governo malha no povo. Claro, claríssimo. Não fossem o vil nepotismo e o ódio as pobres dos lacaios da burguesia que nos oprimem, e o bom povo português festejaria a vitória do Glorioso em liberdade, igualdade e fraternidade, talvez com algumas pedras pelos ares, é certo, mas nada que justificasse a tirânica repressão.
Politizar casos de polícia é mau sinal, mas isto é outra coisa. É puro desespero. Não há mesmo mais nada a dizer contra a direita?