quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Jonah Lomu (1975-2015)


So, we`ll go no more a roving
So late into the night, 
Though the heart be still as loving
And the moon be still as bright.

For the sword outwears its sheath,
And the soul wears out the breast,
And the heart must pause to breathe,
And love itself have rest.

Though the night was made for loving
And the day returns too soon, 
Yet we´ll go no more a roving
By the light of the moon.

Lord Byron

Todos nos lembramos. Jonah Lomu irrompeu no rugby internacional exactamente ao contrário do verso de T.S. Eliot que descreve o fim do mundo: not with a bang, but with a whimper. O bang foi o Mundial de 95, na África do Sul, tempo de enormes mudanças. O Muro de Berlim caíra há meia dúzia de anos, o apartheid terminara, a África do Sul voltara ao convívio das nações civilizadas e às grandes provas internacionais, Mandela saíra em triunfo da prisão e era agora Presidente da nação arco-íris. Os Mundiais de 87 e 91, ainda sem os Springboks, tinham mostrado a popularidade global do  rugby, apesar do domínio anglo-saxónico e francês. Com a televisão veio o dinheiro e com o dinheiro o profissionalismo. O velho jogo das public schools vitorianas e das cidadezinhas do Midi e de Otago adaptou-se depressa, mas tinha uma desvantagem comercial. Deporto de equipa por excelência, não dispunha de muitas estrelas. Fora do círculo de entendidos, poucos apreciavam as dark arts de um Michael Jones ou a bota certeira de um Rob Andrew. Havia Blanco, Kirwan e Campese, não por acaso grandes finalizadores, mas sabia a pouco. Lomu veio mudar tudo. Chegou aos All Blacks com 19 anos, 120 quilos, quase dois metros de altura e 10 segundos aos 100. Ninguém o conhecia, mas cedo mostrou um estilo directo e devastador que faria as delícias das multidões.
Ainda na fase de grupos, a primeira vítima foi a Irlanda: dois ensaios de Lomu, dois a passe de Lomu e uma exibição que deixou toda a gente de boca aberta. Quem era o miúdo?

Seguiu-se a Escócia, com outro ensaio marcado, outro oferecido e novo tapete de corpos estendidos ao longo do terreno na vã tentativa de o travar. O miúdo tinha mesmo qualquer coisa.
O miúdo não jogou contra o Japão (não foi preciso) e a Nova Zelândia passou aos quartos-de-final, onde venceu Gales. O miúdo não marcou, mas deu mais um ensaio a marcar,depois de outra das suas já habituais cavalgadas.
Mas o melhor estava para vir. 18 de Junho, meias-finais, Cidade do Cabo. Os All Blacks enfrentam a muito boa Inglaterra de Carling e companhia. Todos os olhos estão postos no miúdo. Ao fim de 10 minutos, o desastrado Bachop tenta passar-lhe uma bola longa, que sobrevoa a linha de três-quartos e cai ao chão. A jogada parece perdida, mas o ressalto, caprichosamente, vai parar-lhe às mãos. A trinta metros da linha de ensaio, Lomu embala. Foge a uma primeira placagem de Rob Andrew, foge a uma segunda de Carling, que ainda consegue desequilibrá-lo, cambaleia mas não cai, fica frente a frente com Mike Catt, que se baixa para o placar como mandam as regras, último obstáculo antes da glória do outro lado da linha branca. E passa por cima dele... Não o finta, não se desvia, não o afasta. Limita-se a  prosseguir como se ele não estivesse lá.
Inacreditável. Mas o miúdo faz mais, muito mais. Marca mais três ensaios e manda, sozinho, a Inglaterra de Carling e companhia para casa. Tinha nascido uma estrela. Agora, já se sabia quem era o miúdo: o mais espantoso jogador que alguma vez pisara um campo de rugby. Horas depois, Carling diz aos jornalistas que Lomu é um monstro ("a freak") e que espera não voltar a encontrá-lo tão cedo. O talonador inglês Brian Moore, célebre pelo mau feitio (embora hoje um muito reputado comentador), responde a quem lhe pergunta como parar o "freak": com uma espingarda para elefantes. Não tenho a certeza que fosse uma piada.
Contudo, a força de Lomu vem a revelar-se, na final, a fraqueza dos All Blacks. Contra a anfitriã, apoiada por Mandela e por 44 milhões de sul-africanos à espera de um milagre, a favorita Nova Zelândia concentra-se em fazer chegar a bola ao seu ponta esquerdo. Mas o milagre acontece. Durante oitenta minutos, mais os vinte do prolongamento, os Springboks conseguem sempre placar Lomu. Foi uma das melhores prestações defensivas que já vi na vida. Não houve ensaios, mas foi épico na determinação, no rigor táctico, no sangue frio dos sul-africanos. Quem viu o jogo em directo percebeu que, para eles, aquilo não era só um jogo. O sentimento de que qualquer coisa extraordinária se estava a passar é bem exemplificado por aquele que foi, quanto a mim, um dos episódios do jogo. Ao fim de um quarto de hora, os All Blacks tentam um movimento previsível, mas nem por isso menos demolidor: a entrada de Lomu a seguir ao abertura. O ponta recebe a bola de Mehrtens a todo o vapor, passa pelo abertura e pelo asa contrários como se não existissem e, quando parece ter pela frente uma auto-estrada, é Westhuizen, o mais tecnicista dos Boks e na altura o melhor médio de formação do mundo, quem se lança aos seus joelhos, vindo sabe-se lá de onde, e consegue  derrubá-lo com uma placagem de tirar a respiração.
Imaginem que Miguel Ângelo deixava o escopro com que esculpia o David, por momentos, e ia extrair mármore com uma picareta para Carrara: a placagem de Westhuizen foi mais ou menos isso. E teve um efeito psicológico extraordinário. De repente, o mundo inteiro viu que era possível para Lomu. Os All Blacks bem tentaram dar-lhe a bola de todos modos e feitios, mas havia sempre um, dois, três Boks no caminho. Lomudependentes, os neozelandeses não tinham outra solução que não fosse Jonah - ou a bota de Mehrtens. O jogo foi, por isso, um duelo de chutadores. Stransky, com um drop  a escassos minutos do fim, venceu-o. E, com ele, a nova África do Sul. O resto é história.
Lomu era uma combinação improvável de massa e velocidade. Collin Meads, outro lendário All Black, disse quando o conheceu: "já vi muitos tipos como ele, mas nunca a jogar a ponta". Isso não fazia do "rinoceronte com pés de bailarina", como alguém lhe chamou, o melhor jogador de sempre, título talvez atribuível a Gareth Edwards ou a Richie McCaw. O arsenal técnico do big man era limitado - só que tremendamente eficaz. Implacável (nunca esta palavra foi tão literal) no um para um, podia ultrapassar o adversário directo com um monumental hand-off,

uma inesperada troca de pés

ou um débordement perfeito.
 Com isto, criava espaço, esse luxo cada vez mais raro no rugby moderno. São poucos, muito poucos, os eleitos que criam espaço simplesmente pela sua movimentação individual, e Lomu fazia-o como ninguém. Depois, com os 5-10 metros assim ganhos, acelerava para a linha de ensaio, se não tivesse oposição, ou inflectia para dentro e ia ao contacto, semeando o pânico na defesa. E quando isto não dava, sabia que podia contar com o apoio de Josh Kronfeld, príncipe herdeiro da longa e gloriosa linhagem de 7s de manto negro, a quem Lomu, o conquistador, oferecia graciosamente os despojos dos vencidos.
O resultado era pura beleza em movimento, aquela beleza de que são feitas as ondas do mar ou as cargas de cavalaria, uma beleza que entrava pelos olhos dentro sem necessidade de saber distinguir um maul de uma mêlée. O rugby era grande e Lomu o seu profeta. Defendia mal, não sabia chutar e ignorava a placagem, mas vinha do outro mundo, um mundo de heróis e semideuses. Na verdade, Lomu parecia um herói de jogo de vídeo e, alguns anos depois, tornou-se mesmo um deles.
No mundo real, porém, nem os heróis fogem à morte. No mesmo ano de 1995 em que a glória lhe caiu no regaço, foi-lhe diagnosticada uma grave doença de rins. Passou a fazer intensas sessões de hemodiálise, primeiro três vezes por semana, depois todos os dias. Abandonou o rugby pouco depois de brilhar de novo no Mundial de 99 - que também não venceu, eliminado nas meias-finais por uma memorável segunda parte da França (três ensaios gauleses contra dois de Lomu).

Morreu ontem, de ataque de coração, no regresso de um outro Mundial em que a sua Nova Zelândia se tornou a primeira equipa da história a repetir o título e o seu record de quinze ensaios em fases finais foi igualado pelo sul-africano Bryan Habana. Lá no Olimpo, Mandela há-de tê-lo recebido com um sorriso malandro: "Do you remember, Jonah...?"

2 comentários: