terça-feira, 28 de abril de 2015

Violência doméstica: o eufemismo reaccionário

O reaccionarismo conservador alia-se ao reaccionarismo de esquerda. 
O primeiro ponto de contacto é o argumento: sempre houve disto, agora tem é mais visibilidade. Isto destina-se  a desqualificar o comportamento, inscrevendo-o numa lógica de normalidade inevitável.
O segundo ponto de contacto prende-se com interpretação. Tanto  o reaccionário conservador como o de esquerda  entendem o comportamento como produto de taras individuais. O objectivo do conservador( reaccionário...) é esconder  o comportamento das transformações sociais e culturais, o objectivo do esquerdista é isolá-lo dos progressos feitos em sede da tolerância ( defesa dos direitos das  minorias sexuais e dos animais).
O reaccionário conservador não gosta que venha ao de cima a velha camada sob o verniz, porque estraga a liusão de harmonia dos bons velhos tempos; o reaccionário de esquerda não aceita que a nova sociedade, mais justa e igualitária,  inclua o velho território de caça do  macho ofendido e para além disso as parolas  das berças não valem um gay despedido por homofobia.
Ambos os discursos se contentam  com campanhas  e palavrinhas de repúdio. O reaccionário conservador , voire a Igreja Católica, teme mexer no que sobra da autoridade masculina; o reaccionário de esquerda   recusa reexaminar a bolorenta tese da sociedade criminógena, na qual a culpa é sempre  da fábrica social.
Não há nada de doméstico nestas matanças.  Há mulheres  que  têm  profissão ( há três  anos ajudei uma administrativa  casada a ter o seu primeiro cartão  multibanco aos 55 anos),  consomem novelas que pregam  a liberdade feminina,  observam exemplos de outras mais  despachadas ( vejam a velocidade com que se propagam as modas femininas), acreditam  no que dizem os políticos, têm internet  na mais longínqua merdaleja.
O que há é o choque tectócnico entre antigas categorias culturais, autênticos arquivos de poder,  e novas expressões de autodeterminação. Como aconteceu noutras histórias e noutros tempos, os novos, neste caso, as novas,  não são defendidas pela máquina judicial que ainda funciona com a encantadora formalidade das  lamparinas de azeite.

7 comentários:

  1. "Isto destina-se a desqualificar o comportamento, inscrevendo-o numa lógica de normalidade inevitável." Não creio, meu caro. Há, certamente, uma vertente de representação do comportamento, uma espécie de normalidade histórica (mas, não inevitável). Mas a principal razão do argumento, quanto a mim, prende-se com a explicação estatística. Quando a função compreensiva da síntese estatística demonstra que determinados crimes tiveram um crescimento fora do "normal" há-de, certamente, haver uma explicação que não desminta a estatística mas que a situe num campo metafísico aceitável. Neste caso, a participação criminal e a publicização de determinados tipos de ilícitos.
    Depois o meu caro desenvolve para um campo da fenomenologia social que me faz lembrar as teorias criminais criticas radicais marxistas que sempre que se confrontavam com um crime passional, abstruso, inútil ou absoluto, lá se atiravam à cultura e à alma e tudo o mais que aí se incluísse historicamente!! Resultado, síntese e sentença: Lobotomia para todos, já!!

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    1. O meu amigo treslê fabulosamente. Criticas radicais marxistas?
      O meu ponto é bem clássico: as mudanças soacias e culturais evoluem de forma assimétrica, as categorias antigas coexistem durante muito tempo com as inovadoras.
      Carmaba, isto é clássico, aconteceu assim com direitos sindicais ( em todo o lado) e civis ( negros/USA).

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    2. Caro FNV, eu não o estava a associar à escola crítica marxista (bastava-me " recusa reexaminar a bolorenta tese da sociedade criminógena, na qual a culpa é sempre da fábrica social." ) estou a lê-lo acerca da natureza do desvio, certo? Há um desvio ao dever ser. Espanto e consternação!! Mas, apesar de tudo, o meu caro recorre à mesma mecânica da escola crítica "antigas categorias culturais, autênticos arquivos de poder, e novas expressões de autodeterminação.". Genuinamente quase que podemos aplicar um argumento da escola crítica (a coisa do Brecht... - Porque roubas um banco!? Não acreditas na propriedade? Eu roubo o banco porque sei que é lá que está o dinheiro!!), mas à contrário. O homem pode acreditar profundamente, mesmo proselitamente, na igualdade de direitos entre homens e mulheres. Cingir-se de aversão à violência sobre mulheres (a este propósito, enquanto criança, cresci com aquele brocardo, que já o meu Avô trauteava com a validade de uma litania, que dizia: A uma mulher não se bate nem com uma flor. Era esta a antiga categoria cultural. Foi, pelo menos, assim que aprendi.) Dizia, todavia ocorrer o desvio!! De forma desesperada e inesperada!! Porque bates na mulher...

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    3. hummm.. o meu caro é jurista e supeito que reagiu à última frase do meu textito.
      Essa antiga categoria cultural ( da flor) tem muita piada porque não é categoria cultural nenhuma.É um dito de espírito coevo do tempo em que as mulheres nem votavam.

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    4. Nã, longe disso!! Apenas me insurgi contra aquela linha imaginária que liga o desenvolvimento ao tempo e tudo e mais!! Isto porque, eu, no tempo da maldade ainda nem sequer tinha nascido!!
      Eu sei o que é, o que significa e o que comunica a coisa (da flor) apesar de não lhe saber a origem. Mesmo não sabendo a origem, estou em crer, não lhe diminui a validade. A coisa tem validade e comunica valor. Tem tudo para integrar o panteão nacional das categorias culturais. Isto porque, nós vivemos num tempo em que não nos compete inventar palavras novas. Nós vivemos num tempo em que apenas nos compete inventar novas maneiras de dizer as mesmas palavras.
      Um bem haja,

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  2. Caríssimo Filipe, que posso eu dizer enquanto cidadão anarco-capitalista ultra-liberal? Somente que V. tem absolutamente razão. Eis a primeira vez que alguém sintetiza de maneuira completa e lapidar o estado de coisas nesta matéria; deixe-me, contudo, dar o meu modestíssimo contributo. A questão estatística é falaciosa por dois singelos motivos: a) a análise quantitativa depende estrita e exclusivamente da comunicação rigorosa dos eventos verificados, o que nem sempre (quase nunca, ou só "ex post") é feito; b) violência é violência é violência é violência (ou, o que é o mesmo, morte é morte é morte é morte), pelo que a vertente quantitativa só demonstra o grau assimétrico do desenvolvimento genuíno de um povo (é reler Almada Negreiros).

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    1. sim, caro Fernando, a estatística neste assunto, é um mato traiçoeiro.

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