segunda-feira, 28 de abril de 2014

Cadernos da mudança ( II): o grande trânsito das sombras


A expressão é de Victor Hugo, na sua narrativa da Revolução. A Convenção era um campo entrincheirado do do género humano. Sempre me fascinou o caso francês. Tão pouco tempo depois da revolução, impiedosa  com  a aristocracia,  já havia  um Imperador (com uma corte imperial)  que nomeava o irmão, príncipe de sangue,  para rei de Nápoles.
Esbocei aqui a originalidade deste terceiro resgate. Acrescento três "D": dureza, duração, desequilíbrio. Vamos ao agendado - "A perda de influência dos senadores político-mediáticos ( e a sua inscrição no regime)  e a raiva "aos novos" - porque se relaciona com os três "D".

1) Mudança e revolução:

Uma mudança social inscreve-se sempre   na anti-anomia. As mudanças apenas espectaculares resolvem muitas vezes o problema através do grande trânsito das sombras.
É pacífico hoje que as revoluções comunistas  feitas em nome da liberdade produziram cárceres e carrascos tão bons ou melhores do que os anteriores: censura, polícia política, repressão, delito de opinião, fuzilamentos. Na outra sombra do enunciado,  funcionaram: em regra, os descamisados passaram  a viver melhor... pelo menos durante algum tempo.
A mudança portuguesa dos dias de hoje herda o 25 de Abril e  a entrada na UE. Sobre os escombros da libertação ( resultante de um golpe militar e não de uma sublevação nacional) e dos dinheiros europeus, só agora estamos a mudar. E,  de novo, por procuração.
Os senadores político-mediáticos julgaram que, tal como nas duas  anteriores mudanças, lhes bastaria explicar às  pessoas o que aconteceu: os maus ( o capitalismo  neoliberal e os alemães)  estão a comer os bons ( nós).  Muitos persuasores permanentes ( voire Gramsci) desempenharam essa função depois de 74 e no cavaquismo. Primeiro marxizando o povo, depois demonstrando  a inevitabilidade do progresso e do betão ( muitos fizeram a manicure à velocidade da luz) . O problema é que agora a informação é menos filtrada e mais caótica. Há manipulação? Claro, mas muito menos do que no tempo de um só canal televisivo e sem internet. Há um problema de sobrevivência numa UE nórdica? Sim, mas a simplificação já não convence ninguém.


 2) A violência da interpretação: quem representa quer criar:

A raiva  dirigida aos alvos mais fáceis, os novos, que eles tanto desprezam ( os  alienados da bola, os praxistas, os empreendedores etc), acontece porque os senadores reivindicam o direito  de interpretar.
A colagem ( ou a re-colagem) de alguns às teses da extrema-esquerda deve ser compreendida à luz da verdadeira lei da rolha: flutua.  É o único discurso que está sempre à mão. Se revisitarmos as palavras da  UDP, PSR e PCP durante o  cavaquismo ( anos 80-90), encontramos os slogans de hoje.  O que os arquivistas da ordem têm feito é reagir contra uma desordem  que lhes parece exterior ao seu domínio natural.
A desilusão diante  da ausência da sublevação e do caos foi mais forte do que a tentativa de compreender essa ausência. Este exemplo do vazio é de chupeta. Se o tivessem feito, em vez de falar em nome de, ter-se-iam apercebido de que as gerações formadas nos últimos dez-quinze anos não são representáveis.
Não se trata  de aceitar  a pobreza como condição nacional, porque, como dizem os próprios senadores , nunca fomos ricos. Trata-se de salvar o que se tem, tarefa bizarra para os que  têm sempre, seja qual for o lado do qual sopra o vento. As pessoas subentendem que os apelos a fórmulas antigas não lhes garante nada.  O poder intelectual de persuasão e influência, associado por natureza às traves sólidas do poder político e mediático, esbraceja zangado e procura culpados.
Por fim, a dispersão das esferas da representação ( blogues, facebook, revistas online, twitters) acabou com o que restava do arquivo uníssono. Mais fontes, menos donos da água.




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