quarta-feira, 23 de abril de 2014

Torre Vermelha

Amanhã, às 22 horas, a Cinemateca passa Torre Bela, o célebre documentário do alemão Thomas Harlan sobre a ocupação de um latifúndio no Ribatejo em 75. Começa com um longo travelling à volta de uma propriedade murada, segundo a lenda a maior do país, e não por acaso. Torre Bela é a crónica de um cerco. Durante duas horas, sem comentários nem legendas, o realizador dá-nos a ver as sucessivas operações de conquista popular da herdade, desde a invasão do terreno à entrada final no palacete dos proprietários. Mas é também uma metáfora dos limites impostos pela realidade às utopias do PREC, encerrado nas suas contradições internas, preso ao fracasso das experiências de autogestão, derrotado pelas “forças contra-revolucionárias”. Harlan mostra-nos o momento e o lugar em que a utopia se confunde ainda com a realidade: no Verão quente, entre o Cartaxo e a Azambuja. Em toda as revoluções, tarde ou cedo há um ataque simbólico aos monumentos do antigo regime, prova do estreito nexo entre arquitectura e poder. Por isso Chesterton, a propósito da tomada da Bastilha, diz que as revoluções começam por ser abstractas. Nos campos do sul de Portugal, de que a Torre Bela se apresenta como exemplo, a nova ordem revolucionária quer destruir a velha posse da terra, devolvida pela Reforma Agrária a quem a trabalha. É o primeiro símbolo a abater. Daí o subtítulo do documentário - “a terra” -, tema recorrente da entrevista inicial ao Duque de Lafões, ele próprio símbolo do fim de uma era, no seu francês escolar e na sua dignidade de aristocrata acossado pelo tempo e pela multidão, que lá fora o insulta (“Aquele malandro!”), organiza piquetes decididos a “não recuar” e vocifera episódios remotos de injustiça. Um diz que o mandaram embora “como um cão”, outro queixa-se da courela que roubaram aos avós, uma terceira alegra-se com o 25 de Abril porque “este ano vamos poder apanhar a azeitona enterrada na Torre Bela”. Só depois deste prólogo, em que a memória do passado legitima a luta do presente, se passa da ocupação da terra à dos edifícios, insistentemente exigida nos plenários por Camilo Mortágua, o activista da LUAR a quem os ocupantes pedem orientação política e que, durante alguns meses, será o seu principal conselheiro. O PCP, como se sabe, demarca-se dos acontecimentos, o que lhes dá um ar de amadorismo ainda mais surrealista do que tudo o que se passa então no resto do país. E passa-se muito. Com a ocupação dos prédios rústicos vem a cooperativa, vanguarda do proletariado da Torre Bela. Mas o proletariado não está politizado e faz a vida difícil à vanguarda: nos plenários ninguém se entende, há quem se queixe que a respectiva aldeia não é representada pela democracia directa, há quem não queira trabalhar nos turnos e, cena mítica, há quem não queira ceder a pá para uso da “comprativa” por medo do “descaminho” nas mãos dos outros. A propriedade privada, inimigo público da revolução e última trincheira da liberdade. Locke explica. Entretanto, o acto de força é reconhecido pelo próprio exército que, numa reunião não menos mítica entre militares e camponeses, garante estar ao lado do povo, como então se dizia. Ou, como dirá um oficial, “é o povo que faz a revolução”, a tropa está ali para ajudar o povo e o povo que ocupe que “a lei logo virá”… A lei não veio, mas a tropa, correndo o boato de que o Duque ia lançar um contra-ataque com “uns tipos que podia ir buscar ao Bairro Alto e ao Intendente para lançar umas granadas”, desloca-se à quinta, de G3 em riste, para proteger o povo da reacção e comungar do fervor revolucionário. O último acto do cerco é a tomada do castelo, representado pelo solar da família Lafões, centro físico e simbólico da herdade. Ponto sem retorno, este desfecho é precedido de longos colóquios e dúvidas. Ao franquearem a cidade proibida, sem violência porque já lá não está ninguém, os descamisados fazem-no com um espanto quase religioso, ainda que se entreguem a um vago saque das roupas e objectos dos antigos senhores e até a um arremedo de profanação carnavalesca: a criança que martela o piano, as hóstias atiradas ao ar, o rústico que veste uma alva e finge dizer Missa, o trabalhador que enverga uma jaqueta do patrão que lhe fica curta – outra involuntária metáfora da revolução. Ironia da história: o documentário termina com um texto lacónico, sobre um fundo em que se vêem os ocupantes a amanhar a terra, dando conta de que, alguns meses depois, o episódio chegaria ao fim por intervenção militar. A situação política mudara, os ventos do PREC tinham passado, as ordens de Lisboa eram para repor a legalidade. A quinta da Torre Bela voltou mais tarde às mãos dos proprietários, que a venderam a uma sociedade imobiliária sem nunca regressar. Ao contrário da profecia de Marx, nem sempre o socialismo sucede ao capitalismo. (Este post é uma versão de um artigo que escrevi para a Atlântico.)

2 comentários:

  1. E está muito bem esgalhado, sim senhor, caro Picoito!! Um explante falhado!! O mais interessante neste filme é a inefável percepção de falhanço que acompanha todos os actos. Adivinhamos o fim, mesmo já o sabendo. Como se a realização soubesse, antecipadamente, de toda a trama e do inútil fim . Uma farsa, nesse sentido, romanceada!!
    A profanação é revelada como o ápice de um acto que tinha inevitavelmente de ocorrer. Cumprindo a estrutura de um romance e onde se vislumbra já a tragédia final de uma mão cheia de nada! Os pequenos constrangimentos e a pequena tirania preenchem o pano triste da obra (a relutância do personagem que se recusava a estar obrigatoriamente obrigado a entender) !! O documentário é excelente. É actualmente utilizado e glosado por aqueles que se cobrem de aversão à hipótese que ali se pretendia tornar peremptória e real. Empregam-no como documento de escárnio, com afinco e expressividade, para memória futura!! Do outro lado lêem-no como memória da traição a um horizonte possível!!
    Um excelente texto sobre um excelente filme!!

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  2. Obrigado. Só uma curta precisão: o que me fascina no filme não é tanto "a aversão à hipótese que ali se pretendia tornar peremptória e real", embora a ideia da ocupação em si própria seja para mim aberrante, mas o tal sentimento de fatalidade que vejo sempre, como conservador, na concretização da utopia. É uma lição sobre política e sobre a natureza humana.

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