segunda-feira, 21 de abril de 2014
Memórias e perplexidades de um filho da democracia
Ao contrário de tanta gente, não tenho nenhuma memória do 25 de Abril. Uma bizarria a que não será alheio o facto de ter então três anos e muita inveja do Eng. Sócrates, que sempre recordou com famosa precocidade as exactas circunstâncias do seu encontro com a história. Na verdade, a minha primeira lembrança política é a morte de Sá Carneiro, estava eu na 4ª classe. Não tanto por saber quem fosse Sá Carneiro ou o que era aquele acontecimento retomado sem cessar pela televisão, mas por ter visto, pela primeira vez na vida, o rosto silencioso da tragédia na cara dos meus pais. A derrota de Soares Carneiro, dias depois, foi apenas a confirmação do que eu sentira ao ver as imagens do Cessna esmagado contra uma parede de Camarate: o "nosso" lado perdera.
Conto isto porque pertenço a uma geração que, sendo de direita (ou não sendo de esquerda), cresceu em democracia e não tem qualquer relação política ou afectiva com o anterior regime. Para mim, Salazar é uma personagem tão distante como Sidónio Pais ou Afonso Costa (talvez mais, porque sempre houve na família uma fortíssima mitologia da Primeira República, alimentada por uma bisavó monárquica que considerava Salazar um traidor da causa, um bisavô - seu marido e republicano - que combatera em La Lys, e outro bisavô - ainda mais republicano - que tinha sido preso por envolvimento no atentado a Sidónio). Para mim, a democracia é o regime natural, aquele em que cresci, aquele em que comecei a votar assim que tive idade para isso, aquele em que me filiei no PSD assim que o Eng. Guterres chegou ao Governo, aquele em que escrevi de milhares de linhas inúteis nas campanhas de milhares de eleições e referendos.
Em suma, para mim a democracia é a normalidade e essa normalidade concretiza-se em votar. Por isso me deixa perplexo que a Associação 25 de Abril, autoproclamada herdeira do MFA, queira comemorar no inevitável Largo do Carmo os quarenta anos da revolução em festejos paralelos aos oficiais, a decorrer no Parlamento. Já sei que o motivo é que não os deixam discursar em S. Bento e que os militares de Abril, depositários da pureza da revolução, entendem não só ter mais legitimidade do que os partidos para falar em S. Bento como não terem os partidos do Governo legitimidade nenhuma para falar seja onde for. Mas isto, se me permitem, é um entendimento muito pouco democrático da democracia. Pode criticar-se o Governo por muitas razões, e eu próprio já o fiz, mas não se pode criticar os partidos do Governo por não terem legitimidade democrática. Ganharam as eleições, são apoiados por uma maioria parlamentar, estão a governar respeitando a Constituição e, se não estão, os checks and balances do regime funcionam. Ora, os supostos intérpretes do "espírito de Abril" dizem, no fundo, que a legitimidade democrática de quem fez a revolução pelas armas é maior do que a legitimidade democrática de quem ocupa o poder pelo voto. O que é uma contradição nos termos porque o 25 de Abril se fez exactamente para eleger quem está no poder (foi o que me ensinaram na escola, pelo menos), e não para que alguém se arrogasse uma legitimidade superior ao voto para interpretar o verdadeiro sentido da revolução. O 25 de Abril não tem donos. Nem mesmo os que o fizeram.
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ResponderEliminarPedro, o homem nunca disse que os partidos do governo não tinham legitimidade para falar, nem que era dono do 25 de Abril. Nunca o disse. Disse? Já não sei nada. Está tudo turvo, mas tenho uma muito vaga ideia de que o parlamento é que o convidou para estar presente nas comemorações e ele limitou-se, lá do seu canto, a dizer que só iria se o deixassem lá falar. Os que por isto o acusam de pressão intolerável e chantagem devem ter um desejo irresistível e até patológico de o verem sentado nesse dia no hemiciclo de São Bento, o que é curioso. Ele também de vez em quando fala mal do governo e dos partidos e diz que o espírito do 25.A não foi cumprido e que a democracia está em risco, etc. Devia estender-se ao Vasco Lourenço um direito de expressão que geralmente é reconhecido ao senhor José Lourenço? É discutível. Parece que de vez em quando também se mostra orgulhoso de qualquer coisa que terá feito há 40 anos, o que, neste caso sem dúvida, configura um irredimivel pecado de soberba. Mas fez realmente? Também não sei. Eu tinha acabado de fazer 11 anos há três dias, e a partir dessa altura, sempre que na escola me perguntavam o que tinha acontecido nesse dia, eu respondia o mesmo que quando me perguntavam pela batalha de ourique: eu sei lá, era muito pequenino, senhora professora e já me habituei a viver sem o som de espadas e cavalos a galope. Deixem-no pelo menos ir mandar uns bitaites e comer umas febras assadas com os amigos no largo do Carmo. O Movimento dos Corvos de São Vicente também fez o 25 de Abril para esse pobre maluco. Mas não tenho a certeza.
ResponderEliminarcaramelo