terça-feira, 7 de outubro de 2014
O Sínodo
O Sínodo sobre a família, que os jornais têm descrito como "um dos mais aguardados dos últimos anos", começou anteontem em Roma. Com a presença de duas centenas de bispos de todo o mundo e precedido de um amplo inquérito ao povo católico (14 mil respostas em Portugal), será sem dúvida um momento de renovação da pastoral familiar da Igreja. Ao contrário da maioria dos opinadores, muito dados ao sensacionalismo que estas coisas costumam atrair, não me parece nada claro em que sentido irá essa renovação. Para alguns, o Sínodo é um campo de batalha entre progressistas, com o Papa à cabeça, e conservadores, identificados com os cinco cardeias que publicaram um livro crítico da possibilidade de admitir os recasados aos sacramentos.
Como sempre, a questão complica-se. Nem este ponto esgota os trabalhos do Sínodo, nem a fractura entre progressistas e conservadores, para adoptar a dicotomia simplista, esgota as trincheiras possíveis. A dicotomia traduz não apenas o contraste de sensibilidades dentro da hierarquia eclesiástica, mas as profundas clivagens culturais entre as experiências de família na Europa e na América do Norte, por um lado, e o resto do mundo católico, por outro. Há tempos, ouvi D. Manuel Clemente dizer que as respostas ao inquérito exprimiam sobretudo a actual geografia da Igreja. Os europeus e norte-americanos tendem a ser mais liberais em temas como o aborto, a contracepção, o casamento gay e, sim, o divórcio, enquanto os latino-americanos, os africanos ou os filipinos não. Convém recordar que estes últimos são hoje maioritários na Igreja e, atendendo à sua taxa de natalidade, continuarão a sê-lo no futuro (uma corrente demográfica, de resto, com óbvias razões teológicas). A Igreja, envelhecida e secularizada no Ocidente, cresce a sul do Equador, onde é mais conservadora. Nada mais natural que o peso dos números se reflicta nos debates da doutrina, embora a diversidade global não tenha ainda em Roma a visibilidade correspondente. Quer-me parecer que a eleição de um Papa argentino, o tal que seria o chefe-de-fila dos progressistas, tenta corrigir um eurocentrismo de séculos, mas torna-se difícil prever os próximos passos. No entanto, basta olhar para a Igreja Anglicana, à beira de um cisma entre o sul e o norte por causas semelhantes, para ver que as questões fracturantes podem ser exactamente isso. Não acredito que o mesmo suceda à Igreja católica, desde sempre mais unida pelo primado do Papa do que as outras confissões cristãs, mas seria ingénuo ignorar o risco.
De qualquer modo, foi o próprio Papa, na Evangelii Gaudium, quem arriscou o apelo a uma maior delegação dos poderes de Roma nas conferências episcopais. Ninguém adivinha que poderes seriam esses, até porque a iniciativa descentralizadora só pode vir do centro, mas se há terreno onde a Igreja tem uma longa experiência de diálogo com as culturas locais é certamente a pastoral da família. E a liturgia sacramental, já agora. Por outras palavras, não seria uma total surpresa se o Sínodo deixasse os casos mais polémicos, incluindo a comunhão dos recasados, ao critério das conferências episcopais ou mesmo das dioceses. Há precedentes, por exemplo a introdução da Missa em vernáculo no Vaticano II. Não sei em que sentido vai a mudança, mas algo me diz que vai por aqui.
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