sábado, 27 de dezembro de 2014

Mimesis


Sabemos, desde Platão, que os sistemas políticos fechados temem a literatura de ficção. Na República, o filósofo condena-a porque afasta os cidadãos da realidade, dando-lhes em troca a imitação da natureza, a mimesis. Os comunistas chamar-lhe-iam alienação e arte pela arte, os nazis e os fascistas arte degenerada, os fanáticos de todas as religiões idolatria, mas a ideia é a mesma. Não sabemos se Kim Jong-Un leu Platão, mas a tentativa de impedir o lançamento de um filme sobre uma entrevista imaginária ao líder norte-coreano parece a actualização literal do velho anátema platónico.
O filme, consta, até é fraquinho, uma comédia de usar e deitar fora, produto do capitalismo para consumo de massas. O que mostra - paradoxalmente - o lugar da arte em qualquer sociedade, aberta ou fechada. A arte habita um reino em que o poder não tem poder: só a imaginação. Paul Veyne ironizava que a célebre exigência de levar a imaginação ao poder, declinada pelo Maio de 68 e sucedâneos, é ingénua porque ela sempre lá esteve. Kim Jong-Un, que não é ingénuo, tem razões que Platão conhecia.
Devemos-lhe, no Natal de 2014, ter posto a arte no seu lugar.

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