sábado, 17 de janeiro de 2015

A israelização da Europa ( I)

Aproveitando o desafio lançado pelo Miguel Serras Pereira , e também a propósito de vários dos  seus textos, aqui vai uma primeira fisgada que o Miguel  devolverá se  entender:


1) A europa tida com ex-colonial ( a ocidental)   foi engolindo milhares de imigrantes muçulmanos. Disse "engolir" de propósito: de onde e por que motivo vieram as modernas vagas de muçulmanos? Não foi da descolonização, isso é um mito. As segundas  e terceiras maiores áreas  de população islâmica na Europa  não têm passado colonial : a Alemanha ( deixemos de lado a anedota do  Rovuma e a da Namíbia)  e a Bosnia Herzegovina. A primeira, a França, tem de facto um passado colonial, mas não foi a descolonização o factor  migratório. A vaga de 1955-1973 não tem a ver com descolonização enquanto  processo em si mesmo. Foi  essencialmente operária: uma relação simbiótica entre a França  industrial e os imigrantes que escapavam à miséria dos seus lugares  de origem. Quanto à vaga pós-colonial, sobretudo a argelina, Camus recebeu o desprezo da intelectualidade francesa bem pensante ( com Sartre à cabeça) quando rejeitou De Gaulle tanto quanto abominou os façanhudos islâmicos da FLN.

2) Integração substancial, percepção conflitual é uma boa fórmula usada por Stefano Allievi, que também centrava ( em 2005)o problema:
" So the problem precedes geo-politics and terrorism, and has profound roots and a symbolic overload that must be held in consideration. Only this can explain the fierceness of certain attitudes to Islam circulating in the European public space, in which sometimes it would suffice to substitute the word “Jew” for the word “Muslim” to understand their gravity and negative potentiality. 

3) O factor religioso ofusca o factor político.Tanto as primeiras vagas de imigração  como  as recentes vêm de países onde a democracia é uma coisa com penas ( adaptando  a definição que Dickinson deu da esperança).  Edward Said não hesitava: Democracia, no seu sentido real, não se encontra em lado nenhum no médio-oriente nacionalista: só existem oligarquias privilegiadas ou grupos étnicos privilegiados. A grande   massa de pessoas  é esmagada sob o peso de diataduras ou  governos irresponsáveis ( Culture and Imperialism, 1993, pp300).
A Europa democrática  e respeitável  só raspou ao de leve na cultura  tribal, étnica e pré-democrática. Em nome  da hospedagem sem reservas ( Derrida) os muçulmanos ( nas suas varições étnicas  e religiosas) nunca foram incomodados com  a regra do jogo. Compreende-se. Massas de trabalhadores subqualificados, arrumados em subúrbios mais ou menos  imundos, tinham o direito de viver como queriam: uma versão  actual dos proles de Orwell. Ainda hoje,  muitos se horrorizam com a tentativa  de proibição  de niqabs e burkas no espaço público como se isso pudesse esconder a sharia  doméstica  nos espaços privados.

4) Um primeiro esboço da israelização. 
Asquenazes, sefarditas, cristãos, cristãos-árabes, druzos, ortodoxos herdeiros do espírito pioneiro dos russos socialista-sionistas,  sabras, palestinianos etc. Este meu colega resume as realidades de adaptação da diversidade étnica e religiosa  em Israel sob o ponto de vista cognitivo. Serve apenas para dar uma ideia do mosaico.
Mordechai Kedar e Mohamed Mustafa  vão directos ao ponto: a sobrevivência política do movimento islâmico nas eleiçoes para o Knesset, as suas relações com a componente religiosa  e reivindicativa ( Palestina, terra original etc)
Israel tem a experiência dos três pontos europeus  anteriores. A israelização da Europa é uma fórmula que não permite decalcagem exacta, como é evidente. É uma ferramenta para poder pensar a fase actual  de um processo europeu iniciado nos anos  50. E uma das faces é a percepção conflitual, aqui, na Europa, acomodada num acolhimento  de exclusão. Como em Israel.


3 comentários:

  1. Muito boa é a sua tradução do Alucinações do Sacks. Tenho umas notas prontas há muito e depois vai perceber porquê se por aqui passar.

    abraço

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    1. Obrigado pelo cumprimento, Filipe: fiz o que pude, ainda que a neurologia não seja o meu forte e na esperança de não ter incorrido em gaffes terminológicas maiores nesse domínio.
      Já agora, saiba que, embora eu passe por aqui várias vezes por semana, seu fiel leitor que sou, o que me deixaria realmente entusiasmado seria, um dia destes, termos uma conversa ao vivo e à bâtons rompus.

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