sábado, 17 de janeiro de 2015

Paris não vale uma missa


Telegraficamente, que o tempo falta, vou meter a minha colherada no debate que aqui em baixo travam o Filipe, o João Távora e o Miguel Serras Pereira (uma trindade nem sempre santíssima, mas muito recomendável).
Em primeiro lugar, parece-me uma distracção esperar que o Papa, pastor de uma Igreja perseguida ou minoritária nos países islâmicos, se pronuncie a favor do direito irrestrito à blasfémia. Seria atirar gasolina para a fogueira, acto imprudente apesar do petróleo mais barato. O Papa está tão preocupado com as vidas dos cristãos na Síria ou no Paquistão, que não têm quem os defenda, como com as vidas dos cartoonistas em França, que todos defendemos. Paris não vale uma missa e Francisco é um líder global. Deve falar, até porque será ouvido em todo o mundo, tanto da democracia no nosso quintal como da paz no quintal vizinho. Se é que se trata do quintal vizinho: os muçulmanos contam-se aos milhões por essa Europa fora. Não sejamos provincianos.
Em segundo lugar, o Papa nada mais pediu que o famoso bom senso no uso da liberdade de expressão e não qualquer tipo de limite legal à liberdade de expressão. Mais do que a lei, o Papa apelou à prudência, ao respeito pelos outros, à caridade, na linguagem cristã. É uma posição mais pastoral e do que doutrinal, semelhante, mal comparada, à que teve na polémica da admissão dos católicos recasados aos sacramentos. Ninguém acredita, suponho, que isso implique o fim da doutrina da Igreja sobre o casamento. E ninguém acredita, suponho, que a Igreja, já habituada a viver em democracia, queira agora inverter o rumo. Muito me admiraria se Francisco estivesse a pensar na criminalização da ofensa à religião. Se estivesse, aí sim haveria razões para alarme (como, de resto, sugere o Miguel Serras Pereira).
Em terceiro lugar, o que Francisco indicou, no seu estilo peculiar, é apenas um conselho prático ou mesmo um desabafo. Não é uma encíclica, não é um documento conciliar, não é uma declaração dogmática. Ao contrário do que por vezes se julga, nem tudo o que o Papa diz tem o mesmo valor moral ou vincula os católicos do mesmo modo. Em consciência, nada me obriga, como católico, a verter na lei, canónica ou civil, palavras papais de circunstância, assim como nada me obriga a ser sócio do San Lorenzo de Almagro só porque Bergoglio também é. Claro que o apelo à caridade no uso de um direito democrático deve ser bastante mais ouvido pelos católicos, e por todos, do que uma preferência  futebolística. Mal estariam os católicos, e todos, se não o ouvissem e desenhassem os exactos contornos da liberdade pelos da blasfémia e os da democracia pela capa do Charlie Hebdo. O que é muito diferente de querer recortar a liberdade de expressão, incluindo a do Papa.

1 comentário:

  1. Caro Pedro, é´evidente que não se pode esperar do Papa a aprovação moral ou religiosa da blasfémia. Mas o ponto é que a intervenção de Francisco não diz que, embora devendo ser autorizada pela lei, a blasfémia é um pecado do qual os crentes devem abster-se… ou confessar-se. O que o Papa diz é, resumidamente, quem ofende as crenças religiosas de terceiros, leva e deve levar (um murro, um tiro, uma pena de prisão). Ora, se isto não é apontar a via da criminalização da blasfémia, não sei o que possa ser — apesar de toda a generosidade hermenêutica que o Pedro põe, e como católico só lhe fica bem, em querer demonstrar ( querer crer na demonstração?) do contrário.

    Um abraço

    msp

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