A propósito dos posts do Filipe sobre o atentado de ontem e sobre a velha polémica das
caricaturas de Maomé, vou repetir algumas coisas que escrevi na altura. Infelizmente, idiotices como a de Ana Gomes, que atribui o radicalismo islâmico às políticas ocidentais, ainda me surpreendem. Não é novo e já aconteceu no 11 de Setembro, mas dá-me sempre volta ao estômago.
O atentado volta a colocar ao Ocidente uma pergunta difícil:
numa sociedade laica, como conciliar a liberdade de expressão com o respeito
pelo sagrado? Ou de uma forma mais crua: em democracia, a religião pode impor limites
à liberdade?
Para muitos, a resposta é apelar ao bom senso e ao bom gosto. Mas esta resposta a nada responde,
porque o bom senso e o bom gosto não se decretam.
Então, o “direito à blasfémia”, como alguns lhe chamam, sobrepõe-se à legítima "exigência de reconhecimento" de uma comunidade, para usar o conceito de Charles Taylor?
Em certo sentido, e no sentido muito concreto que aqui nos interessa - sim. Onde há qualquer forma de representação do sagrado, há a possibilidade dialéctica de blasfemar. Uma cultura que jamais desrespeitasse os símbolos do sagrado, hipótese meramente académica, seria talvez uma cultura sem símbolos do sagrado. A blasfémia é a outra face do sagrado.
Em certo sentido, e no sentido muito concreto que aqui nos interessa - sim. Onde há qualquer forma de representação do sagrado, há a possibilidade dialéctica de blasfemar. Uma cultura que jamais desrespeitasse os símbolos do sagrado, hipótese meramente académica, seria talvez uma cultura sem símbolos do sagrado. A blasfémia é a outra face do sagrado.
Na
verdade, quase podemos distinguir as sociedades pela forma - muito variável e
sempre objecto de compromisso - como regulam essa dialéctica. Mesmo na Europa
medieval, a Inquisição convivia
com a mais desbragada sátira anticlerical. Porque é que, no século XXI, não conseguimos mostrar respeito pelo Islão sem relativizar os crimes que se cometem em seu nome?
A secularização da Europa actual, que choca com o integrismo de alguns muçulmanos europeus, leva a que as caricaturas sejam vistas de forma muito diferente por "nós" e por "eles". Para "eles", que não permitem a representação de Alá e Maomé
excepto pela palavra, as caricaturas são uma ofensa grave. Para "nós", que há dois mil anos representamos Deus sob os traços de um recém-nascido ou de um condenado à morte, são um mal menor.É uma diferença da qual devemos estar conscientes, sem nunca hipotecar a liberdade de expressão à liberdade religiosa. Se hoje todos os crentes são obrigados a tolerar um certo desrespeito pelos símbolos da religião, isso deve-se a uma situação de maior liberdade dos não crentes. Ainda bem. Trata-se de uma conquista civilizacional e de um fundamento da democracia. E quem não compreende isto merece a liberdade de rezar a Alá ou de tweetar idiotices, mas não a nossa compreensão.
e mai nada.
ResponderEliminarNada mal, caro Pedro. No entanto, se é de reflexão fundamental que se trata, eu levaria um pouco mais longe as suas conclusões, e diria que a democracia é ateia, ainda que os cidadãos que a governam (passe o pleonasmo) possam não o ser — possam ter crenças religiosas enquanto particulares, sabendo embora que a "vontade de Deus" não é politicamente aceitável como fonte de direito ou fundamento das decisões da ecclesia.
ResponderEliminarAbraço
miguel serras pereira
Ateia? A democracia pode (ou até deve) ser laica ou agnóstica, mas ateia não é concerteza. Regimes integralmente ateus existiram e existem (ver Coreia do Norte) e estão longe de ser democráticos.
EliminarUma coisa é o Estado ser independente de Deus (que, aliás e convém lembrar, é algo faz parte - apesar de ter sido ignorado - dos conceitos teológicos do Cristianismo), outra coisa é o Estado ser ateu e REJEITAR Deus.
Ateia, sim —porque se trata precisamente de REJEITAR Deus (a verdade revelada, a fé, o mandamento divino) e a sua intervenção na livre e responsável deliberação e definição da lei e das decisões governantes comuns. Ateia, sim — porque a cidadania democrática exclui Deus do seu âmbito, não reconhece a Deus a prerrogativa de governar a cidade.
Eliminarmsp
Na mouche.
EliminarRejeitar Deus? Quer dizer que deve proibir sinais exteriores (em locais públicos) religiosos? Que deve impedir qualquer manifestação pública de religiosidade? ISSO é uma sociedade ateia e é, por definição, contrária à livre expressão.
EliminarA sociedade por ou deve ser laica, indiferente à existência (ou não) de Deus ou de conceitos de divino e relegar isso para o foro privado dos cidadãos. O que não impede que os mesmos expressem os seus valores ou as suas tomadas de decisão. Tomar uma decisão (individual) com base na religião é tão válido como outra qualquer. Daí que não venha mal ao mundo, por exemplo, na existência de partidos cristãos ou de inspiração cristão, ou muçulmanos ou hindus ou o que quer que seja.
Carlos Duarte, experimente, por favor, ler com um pouco mais de atenção o que eu escrevi e não me atribua ideias disparatadas. A autonomia democrática é ateia porque, visando o autogoverno daqueles que se dão e sabem que o fazem as suas próprias leis, implica nessa medida a destituição política da religião (mas não, é claro, a proibição ou perseguição das práticas e crenças religiosas nos espaços do oikos ou da ágora — embora dentro dos limites, mas com as garantias, que a delimitação política desses domínios acarreta). OK?
EliminarCaro Miguel, eu não diria que a democracia é ateia, a não ser que utilizemos esta palavra num sentido muito lato. Há democracias confessionais (Inglaterra), em que Deus é mencionado na Constituição (Alemanha) ou que juram a posse do chefe de Estado sobre a Bíblia (EUA). Parece-me mais rigoroso dizer que a democracia é laica, ou seja, exige a separação entre a Igreja e o Estado, seja qual for a forma e o grau dessa separação. De qualquer modo, mais importante do que o nome é a coisa. Sem desvalorizar o que disse, interessa-me mais perguntar pelo lugar que a religião tem hoje no Ocidente e de que modo o Islão se encaixa aí. Tema que há muito me interessa (até porque sou católico), mas que ganhou nova actualidade nos últimos anos. A presença de milhões de muçulmanos na Europa, com uma visão de Deus e de César diferente da cristã, volta a suscitar um problema que julgávamos resolvido. O radicalismo é apenas um dos seus aspectos, obviamente o mais inquietante, mas a questão é se o Islão pode conviver com a democracia sem, de algum modo, se secularizar (como aconteceu às sociedades cristãs do Ocidente, mal ou bem, depois de séculos de conflitos e compromissos). E se continuará a ser o Islão que hoje conhecemos, caso se secularize.
EliminarCaro Pedro, suponho que a suboirdinação efectiva da deliberação política democrática a um texto normativo revelado e inquestionável não pode deixar de ser antidemocrática (até mesmo numa sociedade universal e homogeneamente crente de uma mesma fé). Mas, enfim, esta discussão pode ficar para outra altura. Acho que o Pedro me compreendeu, e acho que não estou longe de o ter eu, pelo meu lado, compreendido a si. E, na realidade, a questão que V. levanta sobre o islamismo não podia ser mais oportuna. Eu tenderia até a formulá-la em termos mais brutais. Porque, se é demonstrável que nem todos os muçulmanos piedosos são adeptos do Estado Islâmico ou da Al Qaida, já se afigura extremamente difícil afirmar que um muçulmano piedoso possa ser democrata — ou aceitar sequer a laicidade, na medida em que esta signifique que a lei da cidade é decisão e responsabilidade humana, não sendo a sua definição limitada por verdades de fé ou pertenças religiosas vinculativas. É, portanto, não só o extremismo dos terroristas que se trata de combater, como se fosse possível aceitar o anti-secularismo da concepção islâmica do governo da cidade. E o mesmo se diga, de resto, de todas as fés que continuam ou recomeçam a visar a ressacralização do poder político — pelo que acrescento que, também no seio do catolicismo e de outras confissões cristãs, têm surgido nas últimas décadas movimentos inquietantes.
EliminarMuito haveria a dizer ainda, mas não quero alargar-me para lá do que é razoável numa caixa de comentários. Assim, permita-me que o remeta para o breve texto de Jacques Ellul intitulado Islam et judéo-christianisme (Paris, PUF, 2006), bem como, no que se refere à parte final desta min ha resposta, para um post meu, publicado sob o título "Carta a Frei Bento Domingues" (http://viasfacto.blogspot.pt/2010/04/carta-frei-bento-domingues.html).
Um abraço para si
miguel serras pereira