Em cada linha que escreve, o historiador, se não é mero papagaio de lugares-comuns, desenha à transparência uma metafísica, uma filosofia do Homem, uma teoria da sociedade, uma epistemologia. Não se pode escrever história sem uma visão do mundo. Leia-se o primeiro parágrafo da História da Guerra do Peloponeso:
“Tucídides de Atenas escreveu a guerra dos atenienses contra os espartanos. Começou a narração no início da
guerra, tendo predito que ela ganharia grandes proporções e que seria mais
digna de memória do que todas as já travadas porque, ao entrar em luta, uns e
outros estavam no auge do seu poder e porque o restante povo grego alinhou de
um e do outro lado. Este conflito foi o maior para os gregos e para alguns
povos bárbaros e, pode dizer-se, atingiu a maior parte da humanidade.”
Mas, entre
estes homens, Tucídides não se limita a fazer a história dos atenienses. Nem sequer dos
espartanos. A guerra envolveu todo o “povo grego” e mesmo “a maior parte da
humanidade”. Ao contá-la, Tucídides descobre necessariamente a sua humanidade,
comum a todos os gregos e a todos os que foram atingidos pela guerra. Os antigos colocavam a história entre as humanidades, as ciências
que têm por objecto o próprio Homem. Sem conhecer a história não conhecemos os homens que a fazem - mesmo que os homens nem sempre conheçam a história que fazem, na fórmula demasiado célebre de Marx. Podemos conhecê-los enquanto animais ou conjuntos de células, mas não na sua humanidade. A história é a memória da nossa humanidade.
O que não deixa de ser um paradoxo. A história revela-nos, contra todas as
evidências, que somos humanos. Revela-nos que somos o único animal que tem
razão e liberdade, o único conjunto de células capaz de julgar o bem e
o mal. É por isso que Tucidídes se mostra tão crítico dos seus compatriotas que sucederam a Péricles e conduziram Atenas à derrota. Ele, que viu como o conflito trouxe a desgraça à cidade e a toda a Grécia, não o conta como se fosse
inevitável. Conta que foi uma escolha de duas polei “no auge dos seu poder ”
e que “o restante povo grego alinhou de um lado e do outro”. Narrando o caos, a história torna-se portadora
de sentido por entre a sucessão dos acontecimentos. Diz-nos que alguns
acontecimentos, por exemplo a guerra do Peloponeso, são mais importantes do que
outros, têm mais consequências do que outros, influenciam-nos mais do que
outros. É um antídoto contra a banalidade e a indiferença.
Um clássico, dizia alguém, é uma obra sempre actual.
Caro Pedro, excelente post. Uma "recordação tal como cintila no momento de um perigo", como lhe chamaria talvez Benjamin, e, contudo, propriamente clássico, ainda que de um romantismo nada menos, dir-se-ia, do que revolucionário — se o "revolucionário" não lhe agrada, substitua-o, por favor, por outro não menos instante — nos tempos que correm.
ResponderEliminarAbraço
msp
"Revolucionário" agrada-me cada vez mais.
ResponderEliminarAlguma divergência temos de ter, Pedro. Por mim, como é patente, uso-o — ao termo em causa — com cautelas e paráfrases cada vez maiores. Apesar, é claro (espero), de cada vez me parecer mais necessária uma profunda transformação das instituições que mantemos, passando pela nossa relação com elas. A este propósito, de resto, o modo como o Péricles de Tucídides define os atenienses, também poderia ser citado com proveito. Não como modelo, mas como inspiração.
ResponderEliminarmsp
A propósito de revoluções, lembro-me sempre de umas palavras de Chesterton sobre a Revolução Francesa. Chesterton é geralmente considerado um conservador, mas era muito crítico do regime político inglês do seu tempo, que considerava mais oligárquico do que democrático. Na sua Short History of England, criticando a posição dos tories sobre 1789, dirá mais ou menos isto: a Revolução Francesa mostrou que os pobres, até aí tratados como pedras da calçada, são pedras preciosas porque podem voar. E tudo pode acontecer quando as pedras voam pelos ares.
ResponderEliminarJá estive mais longe de acreditar nisto.
Parece-me que estamos a avançar um pouco mais. Tentando precisar proximidades e distâncias, eu diria, contudo, que a minha perspectiva revolucionária — quer dizer, democrática — é mais modesta: não requer o milagre das pedras voadoras (ainda que reconheça que pode ser necessário que as nossas mãos tenham de as fazer voar contra alguns ídolos e os seus templos…). Impiedade minha, talvez, mas a verdade é que não me parece razoável pensar o milagre de um estado de graça generalizado como regime, para além da instituição e da lei, da coexistência colectiva ou da de cada um consigo próprio. A perspectiva revolucionária que me interessa é a da democratização efectiva, ao mesmo tempo que concebo a demcratização não como perfeição ou fim da história, mas como autonomia. A conquista da autonomia democrática — ou revolucionária — ou será sermos capazes de assumir que somos nós que nos damos as nossas instituições e a nossa própria lei, reivindicando essa responsabilidade, ou nada será que valha demasiado a pena. O "nós" deste "somos nós" é prioritária e radicalmente "social-histórico", mas é também o de uma cidade que institui na condição de cada um dos seus cidadãos o direito e o dever de se pôr em questão e pôr em questão a instituição e a lei que o formou, sem as divinizar ou absolutizar acima do tempo e da história. Muito mais haveria a dizer, é claro. Ce n'est qu'un début
ResponderEliminarmsp