terça-feira, 5 de agosto de 2014

Tucídides de Atenas


Em cada linha que escreve, o historiador, se não é mero papagaio de lugares-comuns, desenha à transparência uma metafísica, uma filosofia do Homem, uma teoria da sociedade, uma epistemologia. Não se pode escrever história sem uma visão do mundo. Leia-se o primeiro parágrafo da História da Guerra do Peloponeso:

“Tucídides de Atenas escreveu a guerra dos atenienses contra os espartanos. Começou a narração no início da guerra, tendo predito que ela ganharia grandes proporções e que seria mais digna de memória do que todas as já travadas porque, ao entrar em luta, uns e outros estavam no auge do seu poder e porque o restante povo grego alinhou de um e do outro lado. Este conflito foi o maior para os gregos e para alguns povos bárbaros e, pode dizer-se, atingiu a maior parte da humanidade.”

 Estas palavras, datadas provavelmente do final do século V a.C., dizem-nos para que serve a história (a mesma pergunta, recorde-se, pela qual o grande Marc Bloch começará, dois mil e quinhentos anos depois e também no meio de uma guerra "de grandes proporções", a sua Apologie Pour l´Histoire ou Métier d`Historien) . Dizem-nos que a história nos ensina quem somos. Tucídides não é apenas um indivíduo, um animal, um conjunto de células. Faz parte de um povo, de uma comunidade, de uma tradição. Por isso nos informa, logo no início, que é “de Atenas”, o que o leva a contar  a“guerra dos atenienses contra os espartanos”, essa “guerra mais digna de memória do que todas já travadas”. É digna de memória, em primeiro lugar, porque a viveu de perto e viveu-a de perto como ateniense. Não é neutro. Contar a guerra do Peloponeso é contar a sua vida, mas também a vida dos homens que viveram ao seu lado. A história não é uma simples curiosidade arqueológica. É o conhecimento dos homens no tempo, o primeiro dos quais somos nós próprios.

Mas, entre estes homens, Tucídides não se limita a fazer a história dos atenienses. Nem sequer dos espartanos. A guerra envolveu todo o “povo grego” e mesmo “a maior parte da humanidade”. Ao contá-la, Tucídides descobre necessariamente a sua humanidade, comum a todos os gregos e a todos os que foram atingidos pela guerra. Os antigos colocavam a história entre as humanidades, as ciências que têm por objecto o próprio Homem. Sem conhecer a história não conhecemos os homens que a fazem - mesmo que os homens nem sempre conheçam a história que fazem, na fórmula demasiado célebre de Marx. Podemos conhecê-los enquanto animais ou conjuntos de células, mas não na sua humanidade. A história é a memória da nossa humanidade.

O que não deixa de ser um paradoxo. A história revela-nos, contra todas as evidências, que somos humanos. Revela-nos que somos o único animal que tem razão e liberdade, o único conjunto de células capaz de julgar o bem e o mal. É por isso que Tucidídes se mostra tão crítico dos seus compatriotas que sucederam a Péricles e conduziram Atenas à derrota. Ele, que viu como o conflito trouxe a desgraça à cidade e a toda a Grécia, não o conta como se fosse inevitável. Conta que foi uma escolha de duas polei “no auge dos seu poder ” e que “o restante povo grego alinhou de um lado e do outro”. Narrando o caos, a história torna-se portadora de sentido por entre a sucessão dos acontecimentos. Diz-nos que alguns acontecimentos, por exemplo a guerra do Peloponeso, são mais importantes do que outros, têm mais consequências do que outros, influenciam-nos mais do que outros. É um antídoto contra a banalidade e a indiferença.
Um clássico, dizia alguém, é uma obra sempre actual.

5 comentários:

  1. Caro Pedro, excelente post. Uma "recordação tal como cintila no momento de um perigo", como lhe chamaria talvez Benjamin, e, contudo, propriamente clássico, ainda que de um romantismo nada menos, dir-se-ia, do que revolucionário — se o "revolucionário" não lhe agrada, substitua-o, por favor, por outro não menos instante — nos tempos que correm.

    Abraço

    msp

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  2. "Revolucionário" agrada-me cada vez mais.

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  3. Alguma divergência temos de ter, Pedro. Por mim, como é patente, uso-o — ao termo em causa — com cautelas e paráfrases cada vez maiores. Apesar, é claro (espero), de cada vez me parecer mais necessária uma profunda transformação das instituições que mantemos, passando pela nossa relação com elas. A este propósito, de resto, o modo como o Péricles de Tucídides define os atenienses, também poderia ser citado com proveito. Não como modelo, mas como inspiração.

    msp

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  4. A propósito de revoluções, lembro-me sempre de umas palavras de Chesterton sobre a Revolução Francesa. Chesterton é geralmente considerado um conservador, mas era muito crítico do regime político inglês do seu tempo, que considerava mais oligárquico do que democrático. Na sua Short History of England, criticando a posição dos tories sobre 1789, dirá mais ou menos isto: a Revolução Francesa mostrou que os pobres, até aí tratados como pedras da calçada, são pedras preciosas porque podem voar. E tudo pode acontecer quando as pedras voam pelos ares.
    Já estive mais longe de acreditar nisto.

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  5. Parece-me que estamos a avançar um pouco mais. Tentando precisar proximidades e distâncias, eu diria, contudo, que a minha perspectiva revolucionária — quer dizer, democrática — é mais modesta: não requer o milagre das pedras voadoras (ainda que reconheça que pode ser necessário que as nossas mãos tenham de as fazer voar contra alguns ídolos e os seus templos…). Impiedade minha, talvez, mas a verdade é que não me parece razoável pensar o milagre de um estado de graça generalizado como regime, para além da instituição e da lei, da coexistência colectiva ou da de cada um consigo próprio. A perspectiva revolucionária que me interessa é a da democratização efectiva, ao mesmo tempo que concebo a demcratização não como perfeição ou fim da história, mas como autonomia. A conquista da autonomia democrática — ou revolucionária — ou será sermos capazes de assumir que somos nós que nos damos as nossas instituições e a nossa própria lei, reivindicando essa responsabilidade, ou nada será que valha demasiado a pena. O "nós" deste "somos nós" é prioritária e radicalmente "social-histórico", mas é também o de uma cidade que institui na condição de cada um dos seus cidadãos o direito e o dever de se pôr em questão e pôr em questão a instituição e a lei que o formou, sem as divinizar ou absolutizar acima do tempo e da história. Muito mais haveria a dizer, é claro. Ce n'est qu'un début

    msp

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