sábado, 13 de setembro de 2014

Guia de autoajuda para casamentos realistas (II)

Diz o Dr. Vicente que as fundações de um sólido casamento assentam na "boa cama". Faz-me lembrar aquele humorista brasileiro que atribuía a vitória na guerra dos sexos a quem vencesse o corpo-a-corpo.  Piadas à parte, todos sabemos que a boa cama (mesmo acompanhada pela boa mesa, como se sugere nos comentários) não chega. Há muitos casamentos que duram a maratona de uma vida inteira com momentos, mais ou menos longos, de distância, doença, demolidor cansaço ou simples decadência. Qual é o segredo? Não sei, mas não há Viagra para o coração.
Talvez o Dr. Vicente, um sábio do jardim das Hespérides, esteja a torcer o nariz à minha invocação de S. Tomás. A este respeito, convém lembrar que os Antigos ignoravam o distinguo entre amor de concupiscência e amor de benevolência, mas intuíam-no. Basta ler a Ilíada e o mito de Orfeu e Eurídice.
Na Ilíada, o amor de Páris por Helena, que provoca a guerra de Tróia, e o amor de Aquiles por Briseida, que desencadeia o início do poema, são exemplos arquetípicos de paixão egoísta. Páris, cobarde e traiçoeiro, rapta uma mulher casada, e mulher de um homem que lhe deu hospitalidade, mas não está disposto a lutar por ela. Tem que ser a adúltera a forçá-lo ao combate, que ele só trava de longe, com flechas envenenadas e o benefício do infractor que é a protecção de Afrodite. E, no entanto, para manter esta conquista, Páris sacrifica a cidade, a família e a coroa do pai. Aquiles, por seu lado, enfrenta o todo-poderoso Agamémnon para ficar com Briseida, quase provocando a derrota dos Aqueus com a recusa em lutar por eles, mas nem lhe passa pela cabeça fazê-la esposa pelo casamento. Ela é apenas um troféu, uma escrava, um objecto de posse. O resto da tropa grega também deixa muito a desejar: abandonam mulher, filhos e casa durante dez anos e vão cercar uma cidade longínqua por dor de corno tribal.  Homero não tem ilusões sobre a baixeza dos vencedores. Nem Borges, quando resume a Ilíada à história "de um herói amuado na sua tenda, sentindo que o rei o tratou injustamente, que depois toma a guerra como uma rixa privada porque um amigo foi morto e a seguir vende ao pai o cadáver do homem que matou..."
Na verdade, se queremos encontrar um pingo de decência (ou de benevolência, diria S. Tomás), temos que ir ao campo dos sitiados. Aí está Príamo, o velho rei que se submete à humilhação de implorar, em lágrimas, ao vingativo Aquiles o corpo desfeito do herdeiro, a fim de lhe dar sepultura. Aí está Heitor, que trava galhardamente uma guerra que não é sua, e que sabe perdida, mas imposta pelo destino em defesa dos seus. Ambos lutam por qualquer coisa maior do que eles próprios.
Chefes e guerreiros, é por esta boca inimiga que a epopeia fala de outros amores. Na cena da despedida de Heitor e Andrómaca, cuja versão fui buscar a Chirico para encimar o post, ela suplica-lhe que não enfrente Aquiles: "Tu és para mim pai e mãe, és irmão/ e vigoroso companheiro do meu leito./ Compadece-te e fica aqui na muralha/ para não fazeres órfão o teu filho e viúva a tua mulher." Heitor responde que não o fará, com o argumento esperado de que sempre combatera "entre os dianteiros dos Troianos/ esforçando-me pelo grande renome de meu pai e pelo meu." À primeira vista, o orgulho impõe-se, para este marido ideal (e note-se que"a boa cama" também lá está), ao amor da mulher e do filho. Mas, depois de dizer isto, o campeão de Tróia confessa que, afinal, "não é o sofrimento futuro dos Troianos que me importa/ (...) muito mais me importa o teu sofrimento/quando em lágrimas fores levada por um dos Aqueus vestidos de bronze/ privada da liberdade que vives agora: em Argos tecerás ao tear às ordens de outra mulher,/ ou então, contrariada, levarás água da Messeida ou da Hipereia." Subitamente, já não vemos o herói que defende uma cidade para atingir a glória imortal, mas o marido que lamenta a triste sorte da mulher, votada a uma ignomínia pior do que a morte - servir "às ordens de outra". Subitamente, já não vemos um casal real, mas dois amantes para quem nada mais existe no Universo - pai, mãe, irmãos, "renome" ou mesmo "o sofrimento dos Troianos". Eis um tipo de benevolência que faria sorrir S. Tomás.
Espero que este apontamento clássico, a que se seguirá o de Orfeu e Eurídice, descanse o Dr. Vicente.

*Trad. de Frederico Lourenço (adaptada).

3 comentários:

  1. Caro Picoito, o texto está muito interessante e tudo!! Só não consigo ver a invocação de S. Tomás. Estará, o meu caro a referir-se a razões para o coração!? O adestramento do coração, pela razão, ou coisa parecida!?
    Porque não a invocação de S. Agostinho!!??

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  2. Porque é geralmente mal compreendida. Santo Agostinho não diz que o amor desculpa tudo (ama e faz o que quiseres, etc.). Diz que, se amamos - e por isto não entende certamente a concupiscência - , fazemos o bem porque queremos o bem. Exactamente como S. Tomás.

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    1. Mas é o caro Picoito que titula a crónica com o sacramento "casamentos", a concupiscência no casamento. Deus quer, o homem sonha e o amor nasce, nada de racional nisto tudo! Por haver nada ou muito pouco de racional na coisa é que me pareceu terreno pouco propício para S. Tomás!! Se pudéssemos explicar, S. Tomás explicava!!

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