Depois
de debatida nos parlamentos de Inglaterra, França, Bélgica e Espanha, a proibição da burqa e do niqab chegou ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. É um teste aos limites do multiculturalismo na Europa e, portanto, às regras
de convivência entre Estados, comunidades e indivíduos na sociedade aberta. Em princípio, nada deveria limitar o direito de alguém se
vestir como quer, desde que não ponha em causa os direitos dos outros. Mais: o
direito de vestir a burqa, conotado
com uma identidade comunitária que nasce da religião, é de algum modo uma
consequência da liberdade religiosa. Ao mesmo tempo, porém, esse uso violenta a
civilização política em que vivemos de dois modos: na noção de identidade
pessoal e na noção de espaço público, fundamentos históricos da democracia.
Na verdade, o uso da burqa e do niqab ultrapassa
o simples exercício de um direito individual. Por um lado, difunde uma mensagem
de desigualdade entre homens e mulheres e até de submissão da mulher ao homem
que contraria, ainda que simbolicamente, a igualdade entre todos os cidadãos.
Por outro, privatiza o espaço público invocando uma estrutura familiar, hoje
desaparecida no Ocidente, em que a mulher está sob a tutela legal do pai ou do
marido. Note-se que essa privatização fere não apenas a dignidade das mulheres,
mas a de todos os homens exteriores à família, implicitamente vistos como uma
ameaça. Perante a lei somos cidadãos iguais, mas perante a burqa somos membros de tribos antagónicas: homens e mulheres,
parentes e estranhos, muçulmanos e não muçulmanos. Ou seja, a burqa nega publicamente a igualdade de
todos perante a lei. No espaço público, que a democracia define como neutro em
nome da igualdade, a burqa é símbolo de
uma identidade comunitária que a rejeita. Para usar o célebre conceito de
Charles Taylor, o direito ao reconhecimento de um grupo aliena assim o direito
ao reconhecimento dos indivíduos que o constituem. Estaremos dispostos, em nome
da liberdade individual ou da liberdade religiosa de alguns, a tolerar este
atentado à liberdade de todos?
No Ocidente, o conceito de indivíduo está
profundamente ligado ao de representação, não apenas no sentido político (o
poder só é legítimo se representa os cidadãos), mas também cultural. Não é por
acaso que a nossa noção de pessoa vem de persona,
nome que os romanos davam às máscaras usadas no teatro clássico para
representar as personagens. A história da arte ocidental é em grande parte a
história das imagens do corpo humano, desde a Grécia antiga, que dava aos
deuses as feições dos mortais, ao cinema moderno, que dá aos mortais as feições
dos deuses.
Pelo contrário, lembra Bernard Lewis, “a tendência da arte
bizantina para o abstracto foi acentuada no Islão, onde o preconceito contra a
representação pictórica da forma humana conduziu em última análise a uma
expressão artística estilizada e geométrica”. O Ocidente é iconófilo, observa o
historiador Jean-Claude Schmitt. Apesar de algumas correntes iconoclastas entre
ortodoxos e protestantes, o Cristianismo representa a transcendência sob os
traços de um homem, da fragilidade do nascimento e da morte à glória da
Ressurreição e do Juízo Final. O dogma central da Encarnação fez com que, durante
séculos, os corpos de Cristo e dos santos fossem o objecto mais representado na
arte do Ocidente. “Deus fez-se imagem em Cristo que se fez homem”, na fórmula
feliz de Bento XVI.
Isto teve enorme influência na cultura ocidental,
levando não só a uma particular valorização do realismo na arte, mas também a
uma equivalência entre a dignidade da pessoa e o seu rosto. Basta pensar em
expressões correntes como “perder a face”, “dar a outra face”, “ter duas caras”,
“não ter vergonha na cara”. Na pintura e na escultura europeias, o retrato é
talvez o único género que sempre se praticou, sinal seguro do valor da representação do
indivíduo ao longo da história. Os nossos museus estão cheios de obras que o
testemunham, do busto de Péricles aos bigodes feitos por Duchamp à Mona Lisa, subversivos na exacta medida da
reverência que tributamos ao original de Da Vinci.
Há na figuração do rosto uma referência tão evidente
como misteriosa à mais elementar dignidade pessoal. É por isso que a célebre
metáfora de Orwell no 1984 (“o futuro
é uma bota a pisar um rosto humano”) nos atinge tão violentamente. Na
capacidade de sugestão de uma grande obra literária, estas palavras tocam o
nervo mais íntimo da nossa integridade.
O mesmo se passa com a burqa. Sem querer fazer paralelismos absurdos, também a burqa nega às mulheres que a usam a
dignidade de um rosto. É um caso clássico em que o exercício da liberdade
ameaça direitos não menos fundamentais, como o direito à própria identidade.
Seja qual for a posição que tomemos no debate, estaremos sempre a negociar valores
que a nossa sociedade tem por indiscutíveis. Talvez reconhecê-lo seja um bom começo
de conversa. Porque que está em causa não é uma peça de roupa, mas as pessoas
que estão por baixo.
*Post recuperado.
*Post recuperado.
os contribuintes existem para financiar o estado MONSTRO
ResponderEliminarenfiado na sua BURCA
ninguém conhece o seu rosto
Caro Picoito, demasiado prolixo, tremendo contorcionismo!! Meu caro, mas o que é que não violenta a civilização política em que vivemos!? Admitimos ou não admitimos fragmentos de violência e ofensa à tal civilização política!? Nem vou comentar o eu e o outro como adereços do espaço público ou do encontro público. Meu caro, nós fazemos o espaço público e este é e será o que dele fizermos!!
ResponderEliminarO que resulta essencialmente, como conclusão inevitável, deste seu texto é a consagração de limites imanentes à liberdade. Mais. Limites imanentes justificados numa espécie de fenomenologia histórico cultural com uma pitadinha de reserva de virtude republicana!! Ora, se há coisa, em sentido filosófico, que caracteriza o Ocidente é, precisamente, a constitucional aversão às imanências adstringentes do "espaço público" sobre o tipo que, de mãos vazias, por lá passa!!
O caro Picoito também coloca a hipótese de aquele trajar se manifestar como uma restrição à liberdade. Uma diminuição autónoma de direitos que pertencem ao trajado. E vamos assumir que consideramos apenas, e verdadeiramente, os casos de restrição autónoma, lá onde consideramos, incluindo, também os constrangimentos da consciência do indivúduo e todas as eventuais escalas de opressão que o submetam enquanto se não afirme manifestamente contra (é o único critério possível). Dizia, essa hipótese há-de encontrar a intolerância de que legitimação!? Acaso devem as auto restrições compreender o mesmo grau de justificação que exigimos às hetero restrições!? Deveremos versar, indagar, esmiuçar os limites do consentimento!?
Verdadeiramente, a semântica da protecção de uma putativa vítima ou das imanências de carácter cultural concorre para uma menor exigência de legitimação e justificação às hetero-restrições à liberdade.
Cordialmente,
Não sei bem de percebo que são as "iman~encias adstringentes ao espaço público", mas algo me diz que é aqui que está o núcleo da polémica.
ResponderEliminarEvidentemente, caro Picoito. É precisamente aí, diria, empregando a sua feliz expressão, que se toca no nervo mais íntimo da nossa integridade!!
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